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Sublimes obsessões

Repetindo parceria, Daniel Day-Lewis e o diretor Paul Thomas Anderson investigam, em 'Trama Fantasma', as facetas mais pantanosas da criatividade 

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 jun 2024, 16h55 - Publicado em 23 fev 2018, 06h00
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  • Entre os virtuoses do cinema contemporâneo, o californiano Paul Thomas Anderson foi sempre o mais imprevisível e agitado. É, também, o que com mais frequência volta a uma mesma inquietação: a força impulsionadora da obsessão, e a necessidade dos homens movidos por ela de teatralizar sua trajetória a fim de explicá-­la a si mesmos, ou de conferir a ela um significado maior. Numa primeira vista, seus filmes são díspares. Boogie Nights, de 1997, trata de uma “família” de atores e produtores na indústria do pornô do início dos anos 80. Magnólia, de 1999, é uma teia de personagens em que sobressaem um pai milionário e moribundo e o filho — um guru de autoajuda — que não o perdoa. Sangue Negro, de 2007, planta-se com os dois pés num terreno épico, o Oeste transbordante de petróleo do começo do século XX, para esmiuçar as duas forças motrizes do engrandecimento americano: a riqueza e a religião. O Mestre, de 2012, troca os nomes dos personagens reais, mas seu objeto é nitidamente um fenômeno da mitificação pessoal — L. Ron Hubbard, o fundador da bizarra Cientologia. No cinema de Anderson, por mais diversos que sejam os temas, o mito é a clave com que os protagonistas buscam harmonizar os sons discordantes da sua narrativa pessoal, e com que tentam moldar o seu tempo. Esse processo tenso e caótico é a matéria-prima também de Trama Fantasma (Phantom Thread, Estados Unidos, 2017), já em cartaz no país, com seis indicações ao Oscar. Neste novo filme, Anderson se transporta para um ambiente completamente fora de sua região de conforto: a Londres dos anos 50, onde Reynolds Woodcock (Daniel Day-­Lewis) está cruzando o equador de uma carreira ilustre como estilista dos muito ricos e aristocráticos.

    Woodcock controla sua turbulência com uma aderência ritualística à ordem, à rotina e ao silêncio, mantidos com mão de ferro por sua irmã, Cyril (a brilhante Lesley Manville). Ele cria febrilmente suas coleções e, assim que as lança, cai num período de prostração. Em geral, este coincide também com o fastio com sua musa do momento — alguma garota induzida a acreditar em amor e compromisso, mas de quem Woodcock quer apenas inspiração momentânea, submissão e como que evaporação em pleno ar: tentativas de entabular conversa, de iniciar o sexo ou o mínimo descuido, como fazer ruído ao espalhar manteiga numa torrada, provocam a irritação incontida de Woodcock, e a sugestão oportuna de Cyril (a quem, com afeto britânico, ele chama de “minha velha coisa e tal”) de que mais esta moça seja despachada.

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    (Arte/VEJA)

    Alma (a luxemburguesa Vicky Krieps) será mais uma delas. Criada de uma pensão no campo, a quem Woodcock conhece durante um de seus recolhimentos, Alma tem modos diretos mas atraentes e uma beleza limpa de pintura flamenga. Woodcock está tão enlevado que acha graciosa a maneira como ela ergue o bule para despejar o chá das alturas. Tendo instalado Alma em sua casa-ateliê, esse é o primeiro defeito que ele tenta corrigir. E, como em todas as demais tentativas de aperfeiçoá-la, encontra uma resistência intransponível: Alma não tem a menor intenção de recolher-se ao segundo plano, e guerreia por cada palmo de território. Ela é igualmente feroz, porém, com qualquer pessoa que tente diminuir ou aviltar as criações de Woodcock, ou penetrar sua intimidade. É completa e indispensável, e é também invasiva e ruptora. Alma, enfim, tem sua própria obsessão — desconstruir e reorganizar o amante-patrão: ele é a sua criação.

    Tanto Daniel Day-Lewis como Paul Thomas Anderson acenam com uma provável aposentadoria após esta colaboração. É uma péssima notícia. Primeiro em Sangue Negro e agora em Trama Fantasma, eles compõem uma parceria de possibilidades ilimitadas. Com seu excepcional domínio gramático e estilístico do cinema, além de seu uso arrojado da trilha sonora (do inglês Jonny Greenwood, do Radiohead), Anderson faz com que em cada enquadramento perfeito se pressinta como é frágil a ordem da criação, e como é próximo o caos que quer anulá-la — um diapasão que o inglês Day-Lewis (aqui, também um conselheiro indispensável para os modos e maneiras de seu personagem) reproduz e multiplica. Dirigido por Anderson, ele mostra algo muito mais relevante que perfeccionismo: é eletrizante o destemor com que Day-Lewis se lança dentro do personagem não apenas para entender seu brilho e sua potência, como também investigar seus recantos pantanosos e sua inesperada vulgaridade. São, ambos, criadores inquietos, ousados — e obsessivos.

    Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2018, edição nº 2571

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