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Sangue bom é sangue novo

Americanos acima dos 35 anos pagam 8 000 dólares para receber transfusão sanguínea de jovens. É mais um capítulo da busca pela juventude eterna

Por Giulia Vidale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 23 fev 2018, 06h00 - Publicado em 23 fev 2018, 06h00

No século XV, revelam os livros de história, o papa Inocêncio VIII, muito debilitado, teria recebido sangue de três meninos de 10 anos de idade para ter sua vitalidade restaurada. A transfusão foi oral. O caso teve um desfecho trágico: todos os envolvidos morreram alguns dias depois do procedimento. O pontífice acatou a drástica solução sob influência do Deuteronômio, livro do Antigo Testamento, segundo o qual “sangue é vida”. A rigor, a ideia do líquido vermelho como algo rejuvenescedor nunca abandonou o imaginário da humanidade.

Cortemos para 2018, no coração do Vale do Silício, o reduto californiano das mentes mais cartesianas do planeta. Ali, quarentões, cinquentões e sessentões milionários estão recorrendo a uma startup de biotecnologia para fazer como o papa Inocêncio: receber sangue de jovens por meio de transfusão com o objetivo de recuperar a sensação de juventude.

O procedimento é oferecido por uma clínica privada que investiga os efeitos do plasma de jovens no combate a doenças do envelhecimento. Atrai homens e mulheres com mais de 35 anos dispostos a pagar 8 000 dólares para receber o material. Como o estudo é privado, sem participação de dinheiro público, não há empecilho ético para cobrar dos que desejam participar da experiência. “Das 100 pessoas já atendidas, todas afirmaram se sentir com mais energia depois do procedimento”, disse a VEJA o médico Jesse Karmazin, criador da Ambrosia, a empresa que oferece o serviço.

O que começou restrito ao campo da investigação de um único laboratório ultrapassou os muros e chegou à televisão. A ideia inspirou um episódio da série Silicon Valley, popular nos Estados Unidos (transmitida no Brasil pela HBO), que satiriza a indústria de tecnologia. No capítulo The Blood Boy (“O garoto do sangue”), o empresário Gavin Belson, interpretado por Matt Ross, recebe uma transfusão de sangue do jovem Bryce (Graham Rogers) para restaurar seu ânimo. Soa estranho, tem jeitão de recurso medieval, mas atenção: o mecanismo pode fazer sentido.

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O voluntário recebe seis bolsas de sangue, quantidade equivalente a 1 litro e meio. A porção transfundida é o plasma, constituído por água, proteínas e anticorpos. O material é comprado pela startup do Vale do Silício em bancos de sangue, que coletam o líquido de jovens de 16 a 25 anos. Mais de 100 marcadores sanguíneos são avaliados pela empresa, mas a lógica da sensação de rejuvenescimento estaria — o estudo ainda não tem conclusões — na redução de níveis inflamatórios no sangue e na ação de substâncias abundantes no corpo jovem. Entre as mais estudadas estão a proteína GDF-11, associada ao crescimento e à formação das veias, e a TIMP-2, envolvida na manutenção da estrutura celular e dos tecidos. Ao entrarem na corrente sanguínea do organismo mais velho, produziriam os efeitos de rejuvenescimento.

Na história – O papa Inocêncio VIII, no século XV: sangue de meninos de 10 anos para se revitalizar (Whiteimages/Leemage/.)

Entre animais, a ação rejuvenescedora do sangue jovem transfundido está consolidada. O primeiro trabalho data de 1956. Naquela experiência, setenta duplas de roedores, formadas por um bicho recém-nascido e um já avançado na idade, compartilharam o mesmo fluxo sanguíneo. O resultado impressionou a comunidade científica. Em 2008, pesquisadores da Universidade Stanford descobriram que os ratos envelhecidos que se submetiam ao procedimento adquiriam células no hipocampo, área cerebral crucial para a memória e o aprendizado, uma das primeiras regiões do cérebro a se deteriorar com a idade.

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Diz a geneticista Lygia Pereira, chefe do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da Universidade de São Paulo: “Há, sem dúvida, um caminho entusiasmante, mas é preciso fazer mais avaliações para que os benefícios se comprovem reais também em seres humanos”. Nove em cada dez experiências científicas são feitas com ratos antes de ser aplicadas em humanos. Um dos motivos é a semelhança genética. Ainda assim, para efeito de comparação em uma das áreas mais ricas em pesquisas clínicas, a oncologia, apenas 8% dos resultados com animais se comprovam em humanos. Além da iniciativa da startup americana, um dos poucos trabalhos com o uso de sangue jovem em pessoas mais velhas, conduzido pela faculdade de medicina de Stanford, começou a avaliar recentemente os efeitos da transfusão em portadores de Alzheimer, para medir o impacto das proteínas no sistema cognitivo dos doentes. Também não há conclusões, ainda.

Por mais seguro e controlado que seja o procedimento de transfusão, sempre haverá riscos. “Não existe a possibilidade de um produto biológico ser totalmente inócuo”, diz a hematologista Melca Barros, médica da disciplina de hematologia e hemoterapia da Universidade Federal de São Paulo. O sangue é um tecido vivo e, portanto, sua transfusão aumenta a probabilidade de alergia a componentes do material do doador e de infecções. O líquido jovem, repleto de fatores de crescimento, pode ainda deflagrar cânceres no receptor. São obstáculos reais, mas nada que reduza o ímpeto da turma californiana em busca do sonho da eterna juventude — até que apareça a próxima aposta. Antes foram os coquetéis de vitaminas, os alimentos com ômega-3 e as injeções de hormônios.

Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2018, edição nº 2571

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