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Poderosos entre os poderosos

Os novos supercriminalistas têm em torno de 40 anos, vêm de faculdades fora do eixo tradicional e já cobram entre 5 milhões e 8 milhões de reais por causa

Por Ullisses Campbell
Atualizado em 24 nov 2017, 06h15 - Publicado em 24 nov 2017, 06h00
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Algumas das marcas que a Lava-Jato registrou até agora dificilmente serão superadas tão cedo. Na lista de milionários que a operação transformou em réus estão integrantes de duas das dez famílias mais ricas do Brasil. Somados, o patri­mônio dos Odebrecht e o dos Batista superam 8 bilhões de dólares. Estão, também, cinco donos e presidentes das maiores empreiteiras do país, cujo faturamento total representa mais de 26% de todo o dinheiro movimentado pela construção civil no Brasil. Estão, por fim, 37 políticos aparentemente muito bem remunerados pelos serviços ilicitamente prestados, tanto que o montante de propinas pago a parlamentares e agentes públicos pelas empresas envolvidas no petrolão já bateu na casa dos 10 bilhões de reais.

A essa fieira de cifras superlativas, outra se junta agora. Ao longo dos três anos de duração da maior operação anticorrupção do Brasil, o cortejo de ricos que desfilou pelas barras dos tribunais não deixou lá apenas a inocência. Uma parte de sua fortuna ficou por ali também — mais especificamente no bolso dos advogados contratados para defendê-los. Antes da Lava-Jato, eram cerca de quarenta as grandes bancas de criminalistas do país, concentradas sobretudo em São Paulo e no Rio. Hoje, esse número dobrou. O novo mercado abrange Brasília e Curitiba e emprega uma rede de mais de 1 200 profissionais, que inclui desde o recém-formado encarregado de ir à penitenciária só para levar roupa lavada ao encarcerado vip até os defensores que não protocolam uma petição em tribunais superiores por menos de 1 milhão de reais. Poderosos entre os poderosos, esses supercriminalistas têm em torno de 40 anos, vêm de faculdades fora do eixo tradicional e já cobram entre 5 milhões e 8 milhões de reais por causa — pouco abaixo dos 10 milhões dos advogados da velha-guarda.

Aos 34 anos, Ticiano Figueiredo é um dos novos ricos. Em sua carteira de clientes figuram nomes como o ex-­deputado Eduardo Cunha e os empresários Joesley e Wesley Batista. Pouco mais de dez anos atrás, Figueiredo alternava o curso de direito na Universidade de Brasília com o trabalho de promoter de festas na capital federal. Morava em um apartamento de paredes finas no bairro de classe média do Sudoeste, em Brasília, e tinha um Ford Fiesta na garagem. Hoje, vive em uma casa de 5 000 metros quadrados no Lago Sul, dirige um SUV da montadora Jaguar e comemora vitórias profissionais com brindes de Château Pétrus (era dia claro ainda quando, numa quinta-feira de outubro, ele e seu sócio abriram uma garrafa do tinto bordelês, safra 1973, comprado em leilão por 9 000 reais, para comemorar a aceitação do pedido de desbloqueio na Justiça de 60 milhões de reais dos irmãos Batista).

Nova guarda, novo estilo – Figueiredo e Velloso: enquanto a velha-guarda espera que a clientela bata à porta de seu gabinete, eles correm atrás de potenciais clientes em qualquer lugar — até na Papuda (Cristiano Mariz/VEJA)

Para Figueiredo, o destino começou a mudar em 2009, quando ele ganhou sua primeira grande causa. Conseguiu inocentar um canadense de 70 anos em viagem à Amazônia de uma acusação de tráfico de cocaína. Com os 200 000 dólares que recebeu à época mais o produto da venda de um apartamento que herdou de uma tia, comprou um conjunto de salas comerciais no centro de Brasília e pôs o seu nome na porta. Egresso do escritório do criminalista Eduardo de Vilhena Toledo, ele diz ter percebido cedo que só enriqueceria se criasse a própria grife. Nesse período, no entanto, as causas mais caras que caíam em seu colo não lhe rendiam mais que 30 000 reais. Sua trajetória e saldo bancário começaram a empinar quando Figueiredo se associou a um velho amigo de faculdade, Pedro Ivo Velloso, então um dos mais promissores profissionais da banca do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay — por sua vez, tido como o maior expoente da área criminal em Brasília, pois já defendeu dois ex-presidentes da República, um vice, quarenta governadores, vinte ministros de três governos e 56 parlamentares, sendo 21 senadores.

Se o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, morto em 2014, era conhecido como o “príncipe dos advogados”, Kakay poderia ser definido como o xeique da categoria. Além da dramaticidade de suas sustentações orais, o gosto pelas festas e pela boa vida sempre foram sua marca. Em tempos pré-Lava-Jato, as comemorações de fim de ano que promovia em sua casa eram capazes de unir todas as esferas da República e grandes empresários em torno de hectolitros de champanhe Taittinger. Hoje, Kakay puxou o freio de mão: “Gastar dinheiro no Brasil passou a ser crime”, disse em setembro, na celebração de seu aniversário de 60 anos, comemorado em Portugal com festa modesta para os seus padrões de detentor de um patrimônio de nove dígitos. Decano dos criminalistas de Brasília, Kakay fez de seu escritório uma espécie de incubadora de talentos e costuma indicar para advogados de sua confiança as causas que ele não tem tempo ou interesse de pegar. Ticiano Figueiredo e Pedro Ivo Velloso reconhecem que foi dele o pontapé fundamental para catapultar o escritório da dupla. Diz Velloso: “Boa parte do nosso sucesso devemos às indicações do Kakay”.

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O xeique do direito – Kakay: anfitrião de festas opulentas, o decano dos criminalistas de Brasília fez de sua banca uma incubadora de talentos e de alguns pupilos, milionários (Cristiano Mariz/VEJA)

Mas, mesmo cobrando até 8 milhões de reais por causa hoje, a dupla  Figueiredo e Velloso não descansa sobre os louros. Enquanto criminalistas tradicionais da Lava-Jato, como Nabor Bulhões, Theo Dias e Alberto Toron, preferem manter-se encastelados em seus gabinetes à espera dos clientes que vêm bater à sua porta, Figueiredo, sobretudo, não tem pruridos em prospectar clientes, estejam eles onde estiverem — o que inclui a Papuda e congêneres. A captura do caso de Eduardo Cunha, por exemplo, encarcerado há um ano, envolveu insistentes pedidos a amigos para que indicassem seus serviços ao ex-deputado. Outro hábito do advogado e seu sócio consiste em vasculhar sistematicamente os processos que dão entrada no STJ. O objetivo é encontrar lá potenciais clientes antes que eles encontrem a concorrência. Tamanha determinação fez a dupla amealhar não menos que 30 milhões de reais desde que começou a atender clientes da Lava-Jato. Como seus colegas de profissão e fortuna, eles não revelam o tamanho do patrimônio conquistado — apenas afirmam que todos os rendimentos percorreram caminhos legais até chegar ao seu bolso.

O advogado Augusto de Arruda Botelho também contou com uma mãozinha na decolagem. Ex-assistente de Márcio Thomaz Bastos, herdou parte do caso da Odebrecht na Lava-Jato com a morte do mentor. Embora ainda não integre a alta nobreza do direito penal, pertence a um grupo que já gozava de boa reputação antes da operação, mas ganhou fama e fortuna depois dela. Formado pela Unip, Botelho inaugurou a intersecção do mundo jurídico com o da moda ao se casar com a modelo Ana Claudia Michels. Em sua festa de 40 anos, colocou na mesma sala a modelo Mariana Weickert e o ex-ministro da Justiça Nelson Jobim, além de um farto grupo de colegas da Lava-Jato, como Antonio Claudio Mariz de Oliveira, José Luis Oliveira Lima, Pierpaolo Bottini e Eduardo Carnelós. Com o excedente financeiro trazido pela Lava-Jato, Botelho, que nasceu em uma família abastada de São Paulo, passou a investir em projetos paralelos, incluindo a sociedade em duas casas noturnas paulistanas e a produção de documentários, filmes e, mais recentemente, uma série para a TV sobre os bastidores do direito criminal.

Na constelação da Lava-Jato desponta ainda outra curiosa categoria — a de emergentes entre os emergentes. É formada por advogados que, nos primórdios da operação, eram vistos com desdém pelo primeiro escalão por aceitarem fazer acordos de delação premiada — anátema entre os egressos do eixo PUC-São Francisco. Aos olhos dos causídicos tradicionais, os “advogados que fazem delação” pertenciam a uma casta inferior, incapaz de construir defesas consistentes com base nos dispositivos do Código Penal. Quando a criminalista Beatriz Catta Preta, pioneira na prática, saiu de cena, em 2015, ao fugir de ameaças do doleiro Lúcio Funaro, abriu espaço para que outros seguissem a trilha. Atualmente, a Lava-Jato conta com 158 delatores, e o que era uma picada virou uma avenida — onde, aliás, desfilam muitos dos advogados que antes juravam que lá não pisariam. “Ouvi muitas vezes que a delação era uma violência contra a ética do processo e que suprimia o direito de defesa do acusado. Hoje, os mesmos advogados que diziam isso fazem delação”, alfineta o paranaense Antonio Figueiredo Basto, que fechou mais de vinte delações, entre as quais a do doleiro Alberto Youssef, do ex-­senador Delcídio do Amaral e do ex-­diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. O trabalho, em três anos, garantiu-lhe um estupendo pé-de-meia na casa dos 50 milhões de reais.

SAO PAULO, BRAZIL - APRIL 27: Ana Claudia Michels and Augusto de Arruda Botelho pose during the 7th amfAR Gala Sao Paulo 2017 'Making Aids History', The Foundation for AIDS Research on April 27, 2017 in Sao Paulo, Brazil. (Photo by Ciça Neder/Brazil Photo Press/LatinContent/Getty Images)
Unindo mundos – Botelho e a mulher, a modelo Ana Claudia Michels (Ciça Neder/Brazil Photo Press/Latincontent/Getty Images)

Em Curitiba, onde mantém sua base de atuação, Figueiredo Basto rivaliza com outra estrela no campo da delação, Adriano Bretas. Os dois começaram compartilhando processos na Lava-­Jato, mas se desentenderam por causa do ex-ministro Antonio Palocci. Interessado em propor um acordo com a Justiça, o político bateu à porta de Figueiredo Basto. O advogado, no entanto, já defendia o ex-diretor da Petrobras Renato Duque e considerou que aceitar o caso de Palocci causaria um conflito ético, uma vez que os dois se acusam mutuamente. A partir daí, conta Figueiredo Basto, sem que ele soubesse, Bretas passou a costurar um acordo com o ex-ministro. Por causa disso, os dois estão hoje rompidos, embora Figueiredo Basto reserve elogios ao ex-amigo. “É um bom advogado.”

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Bretas é uma das mais jovens estrelas da geração Lava-Jato. Aos 35 anos, trocou a sala de 40 metros quadrados no centro de Curitiba por um andar inteiro no mesmo prédio. “Desfruto de um padrão de vida que jamais sonhei ter”, admite. O novo padrão inclui ótimos vinhos e charutos cubanos Cohiba Behike (350 reais a unidade). Formado na Faculdade de Direito de Curitiba e filho único de um criminalista, ele hoje acompanha cerca de cinquenta processos da Lava-Jato relacionados a quinze clientes. Estima-se que já tenha embolsado em razão da operação algo na linha de 20 milhões de reais.

A linha tácita que separa a aristocracia dos emergentes não se limita ao patamar de honorários e à idade. A turma mais antiga goza de maior trânsito em tribunais superiores e, no caso de alguns, até de certa intimidade com a alta cúpula do Judiciário e do Ministério Público. É o tipo de compadrio que fez Rodrigo Janot, então procurador-geral da República, encontrar-se com um dos advogados de Joesley Batista, Pierpaolo Bottini, em um boteco no Lago Sul um dia antes da prisão do empresário.

A alta nobreza advocatícia troca mensagens de WhatsApp com ministros do Supremo e, quando marca audiência com um deles, pode passar até duas horas no gabinete jogando conversa fora. No caso dos mais jovens, as reuniões tendem a ser protocolares, com duração de uns poucos minutos. Advogados como Kakay, Nabor Bulhões e Sepúlveda Pertence são convidados a dar palestras em simpósios jurídicos juntamente com ministros do STF e do Superior Tribunal de Justiça, uma situação ainda longe das possibilidades da categoria que ascendeu agora com a Lava-Jato.

Nada que desestimule os emergentes. “Ainda estou só no começo”, diz Bretas. O criminalista sabe que, para as maiores estrelas do firmamento político e empresarial do país encrencadas com a lei, a diferença entre continuar rico e livre ou passar os próximos anos vendo o sol nascer quadrado reside na habilidade e no conhecimento de advogados como ele. Já para os supercriminalistas da Lava-Jato, o horizonte nunca foi tão largo — com o destino dos poderosos nas mãos, para eles, o céu é o limite.

Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558

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