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Pela reforma do SUS

Enquanto perdurarem os problemas com financiamento, gestão e recursos humanos do sistema, a saúde não será um direito de todos e um dever do Estado

Por Raul Cutait e André Medici*
Atualizado em 4 jun 2024, 17h51 - Publicado em 7 abr 2018, 06h00

Em 1988, com a promulgação da atual Constituição, criou-se uma nova ordem para o Brasil no campo de tratamentos médicos, com a definição, em seu artigo 196, de que saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Era o pilar do Sistema Único de Saúde (SUS), regido pelos princípios da universalidade, integralidade e igualdade (melhor seria o conceito de equidade), tendo a descentralização como o caminho para sua introdução. Embora audacioso e abrangente, o SUS, apesar de todos os seus inquestionáveis progressos, sobretudo nas últimas três décadas, ainda não foi implantado de acordo com seus objetivos, o que torna obrigatória uma ampla reflexão sobre sua situação atual e a necessidade de que sejam geradas novas propostas para seus futuros avanços. Há gargalos decisivos. A saber:

 FINANCIAMENTO. Nenhum grande empreendimento público ou privado sobrevive se não tiver um sólido equacionamento financeiro, prioridades e definições para orientar os gastos, eficiência e efetividade em relação aos custos. É imprescindível um planejamento estratégico com metas e indicadores realisticamente definidos para o alcance dos resultados desejados. O SUS é um enorme empreendimento público, responsável pela saúde dos mais de 200 milhões de brasileiros, incluindo todas as ações relacionadas com atendimento, reabilitação, prevenção de doenças e promoção da saúde, algo extremamente ambicioso. Ambicioso, sim, e, convenhamos, praticamente inexequível, pela limitação de recursos econômicos, que impede a aplicação dos princípios que o norteiam, tanto para seu custeio quanto para seus investimentos. Para agravar, nunca houve uma real contabilização dos recursos adequados para a concretização do seu ideário e uma rota para que se pudesse manter sua progressiva implementação em bases sólidas, evitando-se o uso inadequado dos recursos disponíveis, sem desperdício. De fato, mal se sabe quanto custa a maioria das atividades do SUS, incluindo-se aí os custos administrativos e as variações regionais. Há fatores agravantes: falta de um sistema eficaz de gestão com base em informação, com o apoio de tecnologia apropriada; inflação setorial sempre maior que a inflação do país, em virtude da constante incorporação de novas tecnologias diagnósticas e terapêuticas, bem como a introdução de medicamentos, alguns muito onerosos. Não esqueçamos também da mudança do perfil demográfico e epidemiológico, com o aumento da proporção de brasileiros idosos e da prevalência de doenças crônicas. Adiciona-se a tudo isso o mau funcionamento do sistema chamado de “referência e contrarreferência”, quando o paciente é encaminhado para tratamento de alta complexidade, mesmo vindo de uma Unidade Básica de Saúde. O bom funcionamento permitiria racionalizar o cuidado clínico. É ruim também o sistema de custos das unidades de saúde, atalho para a ineficiência provocada pelo uso inadequado e o desperdício de equipamentos, materiais e, principalmente, recursos humanos. Com essa complexidade, aqui apenas alinhavada, não é surpreendente inferir que haja desvio de recursos. Dentro da atual dinâmica, todas as ações de saúde têm de ser oferecidas gratuitamente a todos os brasileiros. Contudo, isso não está determinado pela Constituição, que, ainda no artigo 196, completa o enunciado de dever do Estado e direito do cidadão com “… garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Portanto, em benefício de maior disponibilidade financeira para quem pode menos, por que não cobrar de quem tem recursos ou proteção privada? Esse sensível tema merece ampla discussão, orientada por políticas sociais mais avançadas.

GESTÃO. A administração da saúde é quase jurássica, em parte por não conseguir atrair e manter talentos nos seus vários níveis, o que dificulta um melhor aproveitamento de recursos econômicos e humanos disponíveis. A utopia de um sistema gerido de forma tripartite (nas esferas federal, estadual e municipal) foi gradualmente substituída por processos estatais inflexíveis que não garantem autonomia para que os gestores públicos de saúde possam alcançar bons resultados assistenciais. Orçamentos limitados, falta de monitoramento e de avaliação, além da ausência de recompensas para os melhores e punições para os menos eficientes, têm dado margem ao uso inadequado e ineficaz dos recursos do SUS e, como não poderia deixar de ser, à corrupção. Adicionalmente, existem dois problemas essenciais: 1) a deficiente informatização dos vários equipamentos de saúde, desde unidades básicas de saúde até hospitais, que contribui para a coleta inadequada de dados administrativos e a praticamente inexistente coleta de informações sobre a qualidade das atenções de saúde, à qual se adiciona a limitada análise das informações coletadas; e 2) o sistema de descentralização baseado na municipalização, que deve ser repensado em termos de redes, definidas por aspectos geográficos, epidemiológicos e até mesmo comportamentais. Diga-se de passagem, a organização sob a forma de redes está contemplada no artigo 198 da nossa Constituição e certamente será um grande avanço organizacional, gerando melhor emprego dos recursos disponíveis e, algo que tem sido pouco valorizado e analisado no SUS, a qualidade dos serviços prestados. Na estruturação de redes, será preciso pensar quando valerá a pena instalar novos serviços e quais, com seus investimentos e custeios, em vez de integrar ou comprar os serviços já oferecidos pelo setor privado na conformação das redes de saúde, possibilidade prevista no artigo 197 da Constituição.

RECURSOS HUMANOS. Devido ao sistema educacional deficiente, os recursos humanos de saúde no Brasil são, em sua maioria, despreparados e desmotivados, incluindo-se aqui os médicos, principalmente agora com a proliferação de faculdades de medicina que não conseguirão formar profissionais com qualidade. Um problema geral é que a maioria dos trabalhadores no setor público da saúde é composta de funcionários civis estatutários, com estabilidade no emprego, o que facilita o absenteísmo. Seus salários chegam ao fim do mês, independentemente de quantas horas trabalharam e quantas vidas foram salvas ou pacientes tratados e curados. Não há incentivos econômicos para aumentar a quantidade e a qualidade da oferta de serviços, fazendo com que a produtividade do setor seja baixa. Os que procuram realizar um bom trabalho seguem tão somente seus preceitos éticos, mas sabem que não serão recompensados por serem profissionais de melhor qualidade, pois, além da falta de incentivos econômicos, não existem planos de carreira. As equipes de saúde em geral não usam os preceitos modernos da multiprofissionalidade, sendo que os profissionais de enfermagem, sobretudo os de nível superior, são largamente subutilizados nas equipes de saúde. Essa situação cria a necessidade de programas de educação continuada em serviço, premiação por sucesso, punição por baixa produtividade e plano de carreira.

ESTRUTURAS DE ATENDIMENTO. Existem enormes disparidades na distribuição das unidades básicas de saúde, centros de atendimento e hospitais pelo Brasil afora. Há um absurdo contraste de áreas desassistidas com outras onde sobram unidades básicas de saúde. Há hospitais deficientes, que geram custos elevados e não oferecem benesses proporcionais à população.

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Finalmente, o fato é que, em especial nesta última década, a saúde se tornou uma das principais preocupações da população brasileira. Essa conscientização sem dúvida é benéfica, pois exige de nossos governantes e de nossa sociedade como um todo que se procurem novos caminhos para melhor equacionar o SUS do futuro próximo.

* Raul Cutait é professor do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP e membro da Academia Nacional de Medicina. André Medici é economista da saúde do Banco Mundial (sul da Ásia) e editor do blog Monitor de Saúde

Publicado em VEJA de 11 de abril de 2018, edição nº 2577

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