O silêncio dos inocentes
Performance em que criança toca o pé e a mão de um homem nu causou protestos, mas não se engane: a criança é quem menos importa aos novos justiceiros morais
Criada em 1969, a mostra Panorama da Arte Brasileira é um evento tão tradicional quanto apagado. A exibição promovida pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) só repercute no restrito círculo dos artistas e entendidos. Até que apareceu um homem pelado no meio do caminho. Na abertura da 35ª Panorama, no dia 26, o artista fluminense Wagner Schwartz usou seu meio de expressão habitual — a nudez — para protagonizar uma homenagem à neoconcretista Lygia Clark (1920-1988). Na performance La Bête, o artista vira uma versão humana dos Bichos, série famosa da escultora mineira. Deitado no chão, nu, oferece seu corpo para o público manipular. Eis que uma menina de 5 anos e sua mãe (a identidade de ambas é o que menos importa nessa história) entraram na brincadeira. A garotinha tocou a mão e o calcanhar do peladão. O contato não durou mais que alguns segundos, mas foi suficiente para detonar mais uma tóxica batalha ideológica em torno da arte.
O vídeo com o trecho da performance viralizou nas redes, desencadeando protestos das milícias digitais à direita no espectro político. Assim como a gritaria que levou ao lamentável fechamento da exposição Queermuseu em Porto Alegre, há três semanas, os franco-atiradores de plantão — com o indefectível Movimento Brasil Livre (MBL) à frente, naturalmente — não titubearam em denunciar uma suposta “apologia à pedofilia”. O ex-ator pornô convertido em paladino dos bons costumes Alexandre Frota gravou um vídeo denunciando a “pouca-vergonha”. “Se aquele vagabundo estivesse deitado aqui, eu ia levantar ele”, ameaçou o astro de filmes como Na Teia do Sexo em sua blitz no MAM. Ele não estava só. Uma horda de justiceiros morais fez protestos ferozes na porta do museu. Alerta à repercussão e às cobranças de movimentos que o apoiam, o prefeito paulistano João Doria embarcou na onda e gravou um vídeo em que chamou a performance de “libidinosa”. No Congresso, o deputado Laerte Bessa (PR-DF) escancarou o perigoso viés de linchamento público que cerca o caso: pregou a tortura do artista. “Direitos humanos é um porrete de pau de guatambu, que nós usamos, muitos anos, em delegacia. Se aquele vagabundo fosse fazer a exposição lá no Goiás, ele levaria uma taca tamanha que nunca mais ia tomar banho pelado”, disse.
O Ministério Público paulista investiga se houve abuso contra a criança. “Não é nosso interesse cercear o direito de criação, a liberdade e a exposição de obras de arte. O que queremos é que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) seja respeitado”, declarou o promotor Eduardo Dias Ferreira. Na opinião do advogado Dinovan Oliveira, da Comissão de Artes da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, a performance, claramente, não feriu o ECA. “Além de o MAM ter informado que a obra continha nudez, situação que por si só já afasta qualquer responsabilidade do museu, a criança estava acompanhada da mãe — que entendeu, com base nos conceitos que ela considera válidos para a criação da sua filha, que a interação não geraria nenhum problema. Nesse caso, o Estado não deve interferir”, diz Oliveira.
O inquérito do MP tem como um de seus objetivos centrais verificar se houve falhas do museu em alertar sobre o teor da performance. Não parece o caso: na entrada, havia uma placa com uma advertência sobre as cenas de nudez. Mas situações assim poderiam ser evitadas se existisse uma regra de classificação indicativa para exposições. Isso já ocorre no cinema e na TV, mas há um vácuo no caso dos museus.
A acusação de pedofilia é ainda menos cabível, na visão do representante da OAB: “Colocar a nudez da performance no mesmo pacote da pedofilia e da erotização infantil é um equívoco. Esse tipo de conclusão ultrapassa os limites da razoabilidade e acaba dizendo muito mais sobre o intérprete do que sobre a situação em si”. A terapeuta de família Lidia Aratangy endossa sua análise. “Aquilo não teve nada a ver com pedofilia ou pornografia. Se a mãe permitisse que um homem nu tocasse a filha, aí seria o caso de questioná-la. Mas não havia nenhuma conotação sexual”, diz. A bem da verdade, é lícito refletir se é apropriado levar uma criança a uma performance com nudez adulta. Mas aí, novamente, a questão é da alçada da família — não é caso de polícia.
O segundo objetivo do MP vai ao xis da questão: é preciso investigar como foi feita a captação de imagens no MAM e sua propagação. O órgão determinou que as reproduções do vídeo, compartilhadas nas redes às vezes sem o cuidado de cobrir o rosto da menina, fossem tiradas do ar. “Divulgar o vídeo, sim, é um abuso contra a criança”, diz Lidia Aratangy. A histeria que cercou a performance tem um tanto de ignorância — imagine o que o MBL e sua turma fariam diante de uma Yoko Ono ou de uma Marina Abramovic peladonas nos anos 60 e 70. Mas não só: há frieza e método político nas reações desproporcionais ao episódio. As gangues da internet manipulam temores coletivos sobre exploração sexual para carimbar o rótulo de “pedófilos” nos oponentes. Nem que, para isso, tenham de expor, sem escrúpulos, uma criança inocente.
Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2017, edição nº 2551