Em 1997, quando foi criada, a Netflix era um serviço on-line de aluguel de DVDs nos Estados Unidos. Logo tomou a frente da revolução do streaming, conquistando 109 milhões de assinantes em 190 países. Também se tornou uma potência na produção de séries e filmes — potência que o cinema tradicional olha com desconfiança. Na empresa desde 2000, Ted Sarandos, 53 anos, hoje chefe de conteúdo, é o grande responsável pelas produções originais da Netflix, como The Crown e Stranger Things. Em rápida passagem pelo Brasil, Sarandos concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
Constantemente, perguntam ao senhor sobre o futuro da TV. Já se cansou disso? Não. É bom ficar repensando o modelo da televisão. Para mim, o futuro continua sendo pôr o espectador em primeiro lugar. A Netflix se destacou por isso, ao deixar o público escolher como e a que assistir, e ao melhorar a qualidade da programação. Deixar uma pessoa assistir a todos os episódios de uma série de uma vez só não é o modelo ideal para um canal de TV, que precisa vender espaço publicitário e fazer o espectador voltar semanalmente no mesmo horário. Mas os espectadores querem ter o poder de decidir o que ver e quando ver.
Existem outras empresas seguindo o mesmo caminho. Como continuar na liderança? Sempre soubemos que esse seria um grande negócio, que outras empresas fariam isso, que a indústria evoluiria. Produzir programas originais de qualidade foi nossa resposta. Damos atenção à produção regional, como fazemos no Brasil.
Em algum momento a Netflix terá de se render à publicidade? Não. O modelo de assinaturas é o que acreditamos ser o correto. As pessoas fogem da publicidade. Por isso amam a Netflix.
O senhor divulgou que a Netflix vai gastar 7 bilhões de dólares na produção de conteúdo no ano que vem. Quanto desse orçamento será gasto em produções brasileiras? Não divulgamos valores por região, pois nosso negócio é global. O que é produzido no Brasil não é só para o Brasil, fica disponível para o mundo inteiro. É o caso da série 3%, que fez sucesso em diversos países que não são de língua portuguesa.
Mas qual a relevância do Brasil nesse negócio global? É um território muito importante para nós. Nosso primeiro programa original fora da língua inglesa foi no México (a série Club de Cuervos), e o segundo foi no Brasil (3%). Temos um planejamento específico para o país.
O que se prevê nesse planejamento? Acabamos de lançar O Matador, nosso primeiro filme local. Faremos outros. E mais quatro séries no próximo ano, com atores, filmagens e produtoras nacionais. Teremos a segunda temporada de 3%, e Coisa Mais Linda, uma série de época. E também a comédia Samantha e O Mecanismo, série de José Padilha, sobre a Lava-Jato — pela qual estou ansioso: já vi uma parte, e está bem forte. José Padilha foi nossa porta de entrada no Brasil — sou fã dele desde Tropa de Elite. Um ano antes de chegarmos ao país, agendei uma reunião com ele, que me deu uma aula de como as coisas funcionam aqui.
Que razões levam vocês a desistir de um título — como Sense 8, cancelado neste ano? A relação entre investimento e número de espectadores. Nesse âmbito, seguimos um modelo bem tradicional. Ficamos orgulhosos de Sense 8, mas é melhor investir em programas dos quais as pessoas vão gostar mais, fidelizando assinantes. Às vezes, aceitamos uma série que tem poucos espectadores, mas isso agrega outros valores: críticas positivas, prêmios, coisas que são boas para a marca. Só não podemos investir no que deu errado.
Que série combinaria todos esses fatores de sucesso? Quando fizemos The Crown, muitos disseram: “Nossa, é muito cara”. Mas, no balanço entre investimento e número de espectadores, foi um dinheiro muito bem gasto. Vamos continuar investindo alto, quando necessário. Já existe muita coisa barata na TV.
O futuro de House of Cards ficou indefinido com o afastamento de Kevin Spacey, envolvido em escândalos de assédio sexual. Qual será o futuro da série? Foi uma decisão difícil, mas não tão difícil a ponto de termos dúvidas. Era o correto. Ainda não sabemos o que fazer agora. É certo que Kevin não voltará. Vamos revisar o roteiro e decidir se ainda é possível fazer uma sexta temporada. Com certeza, não produziremos a história planejada inicialmente. Há mais de 300 pessoas envolvidas no projeto, e seremos cuidadosos em decidir o caminho correto a ser seguido, que honre o trabalho dessas pessoas e os fãs. Mas não está claro se esse caminho existe.
Como policiar as produções para que não surjam escândalos de assédio? A maior parte do nosso conteúdo é feita por produtoras terceirizadas, contratadas para entregar a série ou o filme. Então, vamos fiscalizar com mais intensidade esses sets de filmagem que estão fora. Quando fechamos o contrato, a empresa tem de garantir que existe um ambiente sadio e seguro para o trabalho da equipe.
A Netflix apresentou duas produções no Festival de Cannes neste ano, Okja e Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe. Houve protesto contra a exibição de filmes que não tiveram estreia exclusiva em salas de cinema, e o festival mudou as regras para o ano que vem. Como o senhor avalia a controvérsia? Foi positiva para a Netflix, pois o sentimento que ficou é que a atitude de Cannes foi injusta. Nosso negócio não é ir a festivais e ganhar prêmios, e sim fazer bom conteúdo. Mas não temos nenhum problema com Cannes: podemos voltar ao festival um dia, e meu palpite é que eles vão mudar de ideia. Não somos contra o cinema: somos contra a demora entre o lançamento de um título no cinema e sua chegada à casa do espectador.
O senhor tem o hábito de ir ao cinema? Eu já gostei muito, mas tenho ido menos, pois não encontro, em exibição, quase nada que me interesse. Não tivemos uma leva boa neste ano, e é a essa falta de qualidade que o cinema tradicional deveria reagir. O que nos levaria a sair e pagar o ingresso do cinema, em vez de assistir em casa a um episódio de Stranger Things? A experiência na TV tem melhorado cada vez mais, enquanto o cinema está estagnado. Acho importante que existam critérios artísticos que diferenciem a TV do cinema. Mas essa diferença tem de estar na linguagem narrativa, não no meio de exibição.
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2017, edição nº 2559