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O martírio de Bento XVI

VEJA descobriu que, já antes de sua saída, o papa sofria os sintomas de Parkinson, doença que pode ter contribuído para sua decisão

Por Adriana Dias Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 14 set 2018, 07h23 - Publicado em 14 set 2018, 07h00

“Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência perante Deus, cheguei à conclusão de que as minhas forças, devido a uma idade avançada, não são capazes de um adequado exercício do ministério de Pedro.” A frase, dita a cardeais pelo papa Bento XVI às 11h30 da manhã de 11 de fevereiro de 2013, ficou gravada na história por sua pungência e raridade: havia seis séculos que um pontífice não renunciava ao trono. O ato de Bento XVI chacoalhou uma Igreja assolada por denúncias contra prelados pedófilos e por escândalos financeiros, e logo levantou especulações de todos os tipos. Afinal, a fraqueza papal era por não suportar — ou não saber lidar com — a podridão de um clero corrupto e indecoroso? Ele estaria sendo vítima de chantagem de alguns cardeais? Não se sabe, mas certamente esses problemas incomodavam Joseph Ratzinger.

Havia, entretanto, outro percalço, que VEJA revela com exclusividade após ouvir o depoimento de integrantes da Igreja próximos ao atual papa emérito: Bento XVI sofre de Parkinson, e já sentia os sinais da doença quando renunciou. O Parkinson é um mal degenerativo crônico do sistema nervoso central que afeta brutalmente os movimentos. Ao renunciar, o papa tinha 85 anos. Está com 91.

As fontes de VEJA, que pediram anonimato por não estarem autorizadas a falar publicamente sobre a saúde do papa emérito, contam que sua rotina está mais limitada em razão da doença. Às 7h45, logo depois de acordar, ele celebra missa em uma capela com capacidade para cerca de vinte pessoas. Durante a cerimônia, nos moldes pré-Concílio Vaticano II, de frente para a cruz no altar, sustenta-se de pé com a ajuda de assessores. Emenda a missa com o café da manhã, sempre frugal: pão, café, leite e fruta. Até a hora do almoço, passa o tempo lendo (sobretudo biografias de santos) ou respondendo a cartas de fiéis. Ele escreve a mão. Usa lápis curto, que lhe dá mais firmeza — pede que todos os lápis sejam cortados de forma a ficar quase da altura de sua mão. Tem hoje a letra miudinha, uma característica dos portadores da doença, que compromete a coordenação motora. Uma secretária alemã, que o assiste há anos, é uma das raras pessoas que entendem sua atual caligrafia e transcreve os escritos para o computador.

Junho de 2018 - Francisco, um dos mais assíduos na casa do papa emérito: vida reclusa e limitada ao Vaticano (Vatican Media/AFP)

As pernas são a parte do corpo mais atingida pelo Parkinson até agora. Os passos são cada vez mais curtos e lentos. À medida que o caminhar se torna mais difícil, o paciente de Parkinson curva a cabeça e o tronco e passa a jogar o corpo para a frente. A flexão provoca um deslocamento do centro de gravidade, que resulta em desequilíbrio, e, por esse motivo, os tombos podem se tornar frequentes. Isso explica a foto, divulgada em outubro de 2017, em que Bento XVI aparecia com hematoma no olho direito. Era decorrência de uma queda dentro de casa.

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Bento XVI no início usou praticamente só bengala. Hoje, precisa também de cadeira de rodas e andador — o produto, fabricado na Alemanha, é à prova de quedas. Ou seja, se houver aceleração no caminhar, o andador freará automaticamente. À tarde, quando não está chovendo nem fazendo muito frio, o papa emérito gosta de ir à gruta de Nossa Senhora de Lourdes, nos jardins do Vaticano, para rezar o terço. Mas percorre os cerca de 200 metros até o local a bordo de um carro de golfe, presente da Gendarmeria, a força militar da Santa Sé.

Os primeiros indícios do Parkinson surgiram um ano antes da renúncia, quando Bento XVI estava às vésperas de embarcar para uma viagem ao México e a Cuba. Em 23 de março de 2012, o pontífice apareceu no Aeroporto Fiumicino, em Roma, com visível difi­culdade de andar. Pela primeira vez, apoiava-se em uma bengala. Cumpriu todos os compromissos ao longo daquela semana, mas dava sinais de cansaço, tendo de se esforçar para caminhar. Na volta, segundo o próprio papa contou em uma entrevista quatro anos depois, ouviu de seu médico: “O senhor não pode mais atravessar o Atlântico”. No ano seguinte, teria de vir ao Brasil para participar da Jornada Mundial da Juventude, no Rio, um evento de relevo no calendário papal. Percebeu que não conseguiria mais. E começou a amadurecer a ideia de renunciar.

Dezembro de 2012 - O pontífice durante missa na Basílica de São Pedro: plataforma móvel para percorrer 100 metros (Alberto Pizzoli/AFP)

Em abril daquele ano de 2012, o papa surpreendeu a quem acompanhava a missa celebrada por ele em uma das capelas do Vaticano. Desfiou na ocasião palavras de alta dramaticidade: “Eu me encontro diante do último trecho da jornada da minha vida e não sei o que me espera. Sei, no entanto, que a luz de Deus existe, que ele ressuscitou, que sua luz é mais forte do que qualquer escuridão”. Um segundo sinal contundente de sua fragilidade física se anunciaria em dezembro de 2012, na Basílica de São Pedro. O pontífice se movia pouco e chamou atenção por precisar de uma plataforma móvel, empurrada por auxiliares, para percorrer os 100 metros da ala principal da igreja.

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Hoje, Bento XVI mora no convento Mater Ecclesiae, dentro do Vaticano. O edifício, de dois andares, tem cerca de 400 metros quadrados e decoração módica. Foi construído por seu antecessor, João Paulo II, para ser a residência de freiras de clausura de diversas nacionalidades e ordens, com o objetivo de apoiá-lo com orações. De tempos em tempos, os grupos de religiosas eram trocados. Mas em novembro de 2012, quando o prazo da estada da última congregação terminou, ainda no pontificado do papa alemão, a casa foi fechada para reforma. Ele planejava ir para lá depois da renúncia, decisão que já tomara.

A suspeita de que Bento XVI tinha uma doença degenerativa já circu­lava. Em 15 de fevereiro deste ano, Georg Ratzinger, irmão do papa emérito que mora na Alemanha, deu uma entrevista à revista alemã Neue Post depois de uma visita à residência de Bento XVI. “Meu irmão sofre de uma doença paralisante. O maior medo é que a paralisia possa, a dada altura, atingir seu coração. Aí tudo pode acabar rápido. Oro todos os dias por uma morte boa”, disse Georg. No mesmo dia, o Vaticano afirmou que a informação era “falsa”. No início deste ano, o próprio Bento XVI escreveu uma carta ao jornal italiano Corriere della Sera, em resposta aos inúmeros questionamentos de leitores sobre sua saúde. Disse sofrer um “lento declínio das forças físicas”.

A transparência não é o forte na comunicação do Vaticano. Um dos exemplos mais emblemáticos se deu nos derradeiros dias do papado de João Paulo II, morto em 2005, em decorrência de complicações também de Parkinson. A doença maltratava o corpo do pontífice polonês desde 1996, mas só seria nominada em 2001, por seu médico pessoal, numa entrevista à revista italiana Oggi. Na época, o Parkinson já estava tão avançado que João Paulo II mal conseguia mover o braço esquerdo e erguer a cabeça. O papa morreu sem que a Santa Sé tivesse confirmado oficialmente sua condição. Passada mais de uma década, ao questionar a imprensa do Vaticano sobre a doença de Bento XVI, VEJA obteve a seguinte resposta: “O papa emérito está bem. A sua ‘doen­ça’ são os seus 91 anos”.

Publicado em VEJA de 19 de setembro de 2018, edição nº 2600

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