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O mal do protecionismo

Para fomentar a retomada da economia mundial, é preciso evitar a hedionda experiência protecionista do período entreguerras

Por Roberto Azevêdo*
Atualizado em 30 mar 2018, 06h00 - Publicado em 30 mar 2018, 06h00

As últimas semanas foram marcadas por crescentes tensões comerciais no cenário internacional. A situação é preocupante. Uma escalada de medidas restritivas ao comércio teria sérias consequências para a economia global, em especial neste momento de frágil recuperação. Além disso, tal cenário tenderia a exacerbar sentimentos nacionalistas de intolerância, bem como instabilidades geopolíticas.

O sistema multilateral de comércio foi criado em 1947, logo após a II Guerra, precisamente para evitar a repetição daquela hedionda experiência e para fomentar a recuperação da economia mundial. Ele foi assentado sobre o princípio de que a estabilidade e o crescimento econômico global dependem da colaboração entre os países. Buscava-se um sistema estável, previsível e que evitasse o caminho do unilateralismo e da lei da selva nas relações comerciais.

Nos dias atuais, a Organização Mundial do Comércio (OMC) é o pilar central dessa doutrina. Ela zela pela observação das normas acordadas pelos seus 164 membros. Em casos de divergências comerciais, a OMC dispõe do mais eficaz e ágil sistema de arbitragem entre Estados.

A prova de fogo para a OMC foi a eclosão da crise financeira de 2008. A severa recessão dela resultante parecia querer replicar o cenário dos anos 30. Vivemos o temor de uma escalada protecionista de proporções mundiais. Vários países, inclusive tradicionais defensores do livre-comércio, passaram a cogitar barreiras para proteger o produtor doméstico e medidas de estímulo à compra de produtos nacionais.

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Essa ameaça era muito real, mas não se concretizou. Todas as medidas restritivas nessa área adotadas desde 2008 não afetam mais que cerca de 5% do comércio mundial. Na década de 30, dois terços do comércio global desapareceram em três anos apenas. Uma das principais diferenças entre as duas situações é que, naquela época, não tínhamos a OMC. Desta vez, ela impediu a proliferação de medidas unilaterais no pós-crise. Os governos hoje conhecem as regras e se vigiam mutuamente. Não fosse a OMC, certamente já estaríamos em uma guerra comercial há alguns anos.

Mas as atuais tensões comerciais mundo afora têm raízes em um contexto mais amplo, que não está restrito ao comércio. O mundo está mudando rapidamente — impulsionado em grande parte pela tecnologia e pela inovação. E as perturbações econômicas causadas por essas rápidas mudanças, sobretudo no mercado de trabalho, são um fator decisivo por trás das turbulências comerciais.

É evidente que o progresso tecnológico não é um fenômeno novo. Mas a velocidade e o alcance do que estamos vendo hoje são sem precedentes. E estamos apenas no início dessa “Quarta Revolução Industrial”. A tecnologia e a inovação são responsáveis por cerca de 80% dos empregos perdidos na indústria de transformação. Recentes estudos demonstram que quase dois terços dos empregos industriais existentes podem ser automatizados — mais de 230 milhões de postos de trabalho.

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No Brasil, isso representa cerca de 11 milhões de vagas. Esses empregos não partem para o estrangeiro e não voltarão com medidas de proteção comercial. Eles simplesmente não existem mais. Mais empregos são criados que perdidos com inovações. Mas o trabalhador que perde o emprego para novas tecnologias não é o que ocupará a posição criada nos setores de ponta. As tensões laborais decorrem de uma mudança estrutural no mercado de trabalho. As políticas tradicionais precisam ser repensadas.

Boa parte da resposta está na política interna. Cada país encontrará a própria receita, mas o caminho seguramente passará por reformas no sistema educativo e no treinamento do trabalhador. Os programas de Previdência Social também terão de responder aos desafios de um mercado de trabalho em rápida transformação. São desafios gigantescos que não têm sido discutidos a fundo.

Apesar da evidente complexidade dessa questão, culpar o inimigo externo é uma narrativa com maior apelo popular. É mais fácil culpar o imigrante ou o produto importado pelo desaparecimento de postos de trabalho.

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No ano passado, a OMC tratou dessa questão no seu relatório anual, dedicado especificamente ao tema de comércio, tecnologia e empregos. Além de exercer suas funções tradicionais de monitoramento, negociações e solução de controvérsias, a organização acompanha as mais marcantes tendências mundiais. Busca diagnosticá-las e propor soluções apropriadas.

Um diagnóstico equivocado da situação que vivemos globalmente conduzirá ao protecionismo e ao unilateralismo. O protecionismo criará mais distorções, ineficiências, e destruirá empregos. O aumento de tarifas na importação e o encarecimento da cadeia produtiva equivalem a um imposto adicional sobre o consumidor. Em última instância, confisca parte do salário do trabalhador.

Por sua vez, o unilateralismo rejeita toda a base de sustentação do sistema de governança global instaurado no pós-guerra. Abandona o conceito de maximizar o desenvolvimento por meio da cooperação internacional e favorece a lógica do jogo de soma zero.

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O unilateralismo é mais atraente em tempos de instabilidade e de dificuldades. Torna-se politicamente custoso “ceder soberania” ao processo multilateral, mais lento e árduo por natureza. É uma opção mais viável para os países que têm capacidade de influir nos rumos do debate por força do próprio peso específico.

Entretanto, o unilateralismo não é unidirecional. Uma medida unilateral tende a ser respondida na mesma moeda por outros capazes ou dispostos a sustentar o confronto. Em um mundo economicamente multipolar, o potencial de escalada é real. Com a lei da selva na arena econômica e comercial, mesmo os mais fortes saem perdedores. O exercício do multilateralismo, porém, não é fácil. Requer compromisso contínuo de todos. Demanda consciência coletiva e visão estratégica de longo prazo. Exige muito mais diplomacia, negociação, conversa. É mais lento. Existirá sempre a tentação de tomar as rédeas e tentar resolver as coisas sozinho, sem ter de passar pelas “dores” do multilateralismo.

A OMC é um recurso inestimável. Garante estabilidade e segurança aos negócios, permitindo enormes avanços econômicos, em países desenvolvidos e em desenvolvimento. O que não significa que não deva seguir se atualizando e reformando. O sistema precisa modernizar rapidamente suas normativas para dar tratamento adequado à realidade deste mundo cada vez mais integrado e digital. Seu sistema de arbitragem precisa continuar oferecendo uma forma eficaz de despolitizar e resolver controvérsias. Estamos trabalhando duro em Genebra para alcançar essas metas. Temos feito progresso, ainda que muitas vezes fora do radar da opinião pública.

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Tenho conversado intensamente com todas as partes sobre nossos desafios principais: modernizar o funcionamento da organização e evitar as tentações do protecionismo e das medidas unilaterais. Em vez de aumentarmos as tensões, precisamos encontrar maneiras de resolvê-las. Aquilo de que o mundo precisa é uma OMC fortalecida. Aquilo de que o mundo não precisa é uma guerra comercial, com consequências nefastas para todos, sem exceções.

* Roberto Azevêdo, diplomata, é diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2018, edição nº 2576

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