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O mais incomum dos leitores

Em duas reedições e um ensaio recém-lançado, o grande crítico francês George Steiner convida a revisitar a beleza que só se encontra na melhor literatura

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 20 abr 2018, 06h00 - Publicado em 20 abr 2018, 06h00

George Steiner não havia completado ainda 6 anos quando o pai, em certa noite de inverno, o levou ao seu escritório e, com a alegria costumeira com que lhe contava a Ilíada, leu o episódio em que a fúria do grego Aquiles se volta contra o pobre Licaon, um dos filhos de Príamo, rei de Troia. Eletrizado com a narrativa, com o desespero do jovem troiano implorando por sua vida diante do vingativo Aquiles, o menino aguardava o desfecho da cena. Licaon será poupado ou morto pelo inimigo? Nesse passo, a narração é interrompida: a tradução de Homero que estavam lendo não trazia o final! Aliás, nenhuma tradução escapara dessa falha, informou o pai. Enquanto o menino tremia de excitação com o episódio, o pai apontava para a edição com o texto grego, que repousava estrategicamente na escrivaninha, ao lado de um dicionário: “Vamos tentar decifrar essa passagem?”. E assim, conduzindo os dedos do menino pelas letras do texto grego, traduzindo-as para renovado encantamento da criança, aquele pai acendia uma paixão imorredoura. “O resto de minha vida é talvez uma nota de rodapé àquele momento”, escreveria Steiner em suas memórias.

Nenhuma paixão desperdiçada,  de George Steiner (tradução de Maria Alice Máximo; Record; 518 páginas; 69,90 reais) (Record/Divulgação)

Não é exagero afirmar que o parisiense George Steiner, hoje com 88 anos, passou a vida inteira reencenando aquele momento duplamente: como leitor, foi sempre aquele menino fascinado com o poder da palavra, das ideias e das imagens humanas; como professor, dedicou mais de cinco décadas a conduzir os nossos dedos pelas letras mágicas dos textos mais importantes da cultura ocidental. O mais célebre professor de literatura comparada do século XX, o polímata versado em física e matemática com a mesma paixão com que domina a filosofia e as letras, o mais incomum entre os leitores está de volta ao mercado editorial brasileiro com a reedição de Nenhuma Paixão Desperdiçada e Lições dos Mestres e com o lançamento do ensaio breve Aqueles que Queimam Livros. (Errata, o livro de memórias em que se conta o episódio da leitura de Homero, segue tristemente inédito no Brasil.)

Lições dos mestres,  de George Steiner (tradução de Maria Alice Máximo; Record; 196 páginas; 39,90 reais) (Record/Divulgação)

“O Leitor Incomum”, que abre Nenhuma Paixão Desperdiçada, é uma profissão de fé na leitura. Compartilhando com o leitor, nesse ensaio, a erudição assombrosa que caracteriza seus trabalhos de grande fôlego (A Morte da Tragédia, Depois de Babel, Tolstói ou Dostoiévski), Steiner desenvolve uma rica leitura do quadro O Filósofo Lendo (1734), do pintor francês Jean-Baptiste Simeon Chardin. O tema do homem e seu livro, com suas evocações das iluminuras medievais, é interpretado em cada minúcia: o traje formal com que o leitor vai ao encontro da obra, demonstrando toda a sua cortesia; a ampulheta que marca a passagem do tempo que nos determina e iguala a todos, e, por contraste, destaca a natureza em tudo distinta do livro, que permanecerá, triunfando com o passar dos séculos; o compromisso do leitor, que, de pena em punho, responde ao que lê — nada escapa à interpretação de Steiner, ela própria um ato de criação.

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Percebe-se, na obra de Steiner, a alegria de quem conhece para ensinar. Sua erudição não é mobilizada para humilhar o leitor, mas para servi-lo

Aqueles que queimam – livros,  de George Steiner (tradução de Pedro Fonseca; Âyiné; 92 páginas; 19 reais) (Âyiné/Divulgação)

Essa leitura benfeita, com toda a sua paixão, entrega e responsabilidade, Steiner reconhece, é um ideal — e foi um ideal partilhado pelas culturas que moldaram o que chamamos de Ocidente, mas não mais pela sociedade de consumo. Tal é o argumento que o autor desenvolve, em sutil mas vigorosa polêmica, no ensaio “Os Arquivos do Éden”, no qual a sociedade americana (vale dizer, a sociedade de consumo, industrial e de massas) é apresentada como eficaz guardiã da alta cultura que o Ocidente (leia-se “Europa”) produziu — mas não mais do que isso. A grande democracia de massas não seria capaz, aos olhos de Steiner, de produzir as mais altas aventuras do espírito humano em matéria de arte e pensamento. A tese é mais do que controversa — que fazer da poesia de Emily Dickinson ou do pensamento de Thoreau? —, e o próprio Steiner o admite quando afirma no prefácio do livro que este é o seu texto que mais suscitou rejeição e “reações violentas”.

O ideal de leitura devotada encarnado no quadro de Chardin, porém, não poderia morrer sem defesa — e seja escrevendo sobre a Torá ou sobre Shakespeare, o ensaísta de Nenhuma Paixão Desperdiçada apresenta-se como seu defensor. Intelectual judeu nascido na França, educado nos Estados Unidos e na Inglaterra, professor por décadas na Universidade de Genebra, ex-crítico titular da revista The New Yorker, George Steiner pratica, em todos e em cada um de seus textos, a leitura integral, que respeita o texto acima de tudo e é informada pelo conhecimento profundo da vida dos autores, de seus contextos histórico-políticos, das dimensões filosóficas, religiosas e existenciais presentes em cada obra — tudo, enfim, que precisa ser mobilizado como instrumento de trabalho do crítico. As mesmas obsessões e angústias com a arte da leitura figuram em Aqueles que Queimam Livros, ensaio no qual Steiner examina o encontro entre texto e percepção, livro e leitor. Não, não são tolos os que queimam livros, diz o crítico, pois eles reconhecem o imenso poder dos objetos que destroem.

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Um ideal perdido? - ‘O Filósofo Lendo’, de Chardin: postura de reverência pelo livro e por seu caráter perene (Josse/Leemage/AFP)

Em Lições dos Mestres, produto de seu trabalho na cátedra Charles Eliot Norton da Universidade Harvard, entre 2001 e 2002, o professor que tanto se dedicou à transmissão do que a humanidade já produziu de mais belo faz um tour de force ainda não igualado em matéria de reflexão sobre a relação mestre-discípulo na cultura ocidental. Das disposições intelectuais e espirituais de Sócrates e Jesus Cristo com seus discípulos e apóstolos às censuras que a infantil e estridente correção política impõe à universidade americana, Steiner conduz o leitor pelo erotismo, contido ou explosivo, e pelas devoções, fanáticas ou justas, que marcaram nossa cultura. E ele mesmo é um mestre: percebe-se, em cada texto seu, a alegria generosa de quem conhece para ensinar. É para nos entregar a mensagem de um Paul Célan, de um Dante, de um Homero que esse eterno menino afoito com a alegria do conhecimento nos diz: “Conheçam isto! Amem isto como eu amo!”. Sua erudição não é mobilizada para humilhar o leitor, mas para melhor servi-lo.

Que foi feito de Licaon no episódio da Ilíada que transformou George Steiner em leitor? Para saber isso, o leitor fica convidado a seguir a lição de Steiner — e a abrir a Ilíada para dar vida, uma vez mais, à fúria de Aquiles, à humanidade dos troianos, à grandeza de Homero. O pai do futuro crítico usou um ardil para levar o filho ao grego original: as traduções trazem, sim, a conclusão da história.

Publicado em VEJA de 25 de abril de 2018, edição nº 2579

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