Qualquer jornalista que tenha passado pela redação da Folha de S.Paulo nos últimos 34 anos se lembrará da cena. Otavio Frias Filho (que ninguém ousava chamar de “Otavinho”, mas de “Otavio”) atravessava a redação de terno preto, olhos voltados para baixo e caneta na mão. Andava a passos rápidos e só parava quando se postava diante do interlocutor que procurava. A conversa se dava sempre em tom baixo. Circunspecto, mais ouvia que falava, e enquanto ouvia jogava repetidas vezes a caneta para o ar. Ela girava 360 graus e voltava obediente para os seus dedos, no espaço entre o polegar e o indicador — um gesto nervoso que os anos de prática ajudaram a aperfeiçoar: a caneta nunca caía no chão.
Em 1984, o ano em que assumiu a direção do jornal criado por seu pai, Octavio Frias de Oliveira, Frias Filho implementou o Manual de Redação da Folha. Era um conjunto de regras que visava a diminuir os erros de informação e limpar o texto produzido pelos jornalistas da época: decepava adjetivos, fuzilava advérbios, tornava proscritos os parágrafos com mais de cinco linhas e extirpava na marra qualquer adiposidade estilística que pudessem conter. A partir dali, nenhum entrevistado “ponderava”, “exclamava”, “desabafava” e nem mesmo “explicava”. Todas as aspas tinham de terminar com um seco e suficiente “disse” (“Matei minha mãe”, disse fulano de tal). O Manual de Redação da Folha era uma camisa de aço destinada a eliminar das páginas do jornal — de uma vez e para todo o sempre — prolixidades, gongorismos, subjetivismos. Dessa forma, acreditavam seus idealizadores, Frias Filho acima de todos, seus textos se prestariam a revelar e não a esconder a notícia — que, nua, crua e sem enfeites, ficaria também mais precisa.
O mesmo rigor que aplicou ao manual, Frias Filho adotava nas avaliações do seu produto (foi um dos primeiros a lembrar que um jornal era um produto, para escândalo dos românticos da época). Escreveu o articulista Marcelo Coelho, em texto publicado na Folha no dia seguinte ao da morte do jornalista, de quem era amigo: “(…) o constante desalento com a qualidade do que via impresso dava a Otavio uma aparência de melancolia que, fora das atribuições cotidianas do jornal, desaparecia rapidamente”. O diretor da Folha frustrava-se ao constatar as falhas e limitações tanto no seu negócio como em sua profissão.
O ‘Manual da Folha’ era uma camisa de aço destinada a eliminar dos textos qualquer adiposidade estilística, de forma a revelar e não a esconder a notícia
Em fevereiro deste ano, por ocasião do lançamento da quinta versão do Manual de Redação da Folha, escreveu um artigo intitulado “Jornalismo, um mal necessário”. Nele, lamentava o fato de que “todo relato jornalístico tende ao provisório, quando não ao precário. Nem todos os jornalistas estamos preparados para abordar os assuntos sobre os quais escrevemos. Mesmo quando estamos, é próprio do jornalismo apreender os fatos às pressas, em seus contornos ainda indefinidos”.
Implacável na crítica e na autocrítica, Frias Filho, em sua trajetória pessoal, arriscou muito mais que muitos intelectuais de seu tempo ao se aventurar em territórios que iam bem além da sua zona de conforto. Formado em direito pela Faculdade do Largo São Francisco, da USP, onde também fez pós-graduação em ciências sociais, tinha uma cultura vasta e escreveu sobre política, neurociência, filosofia, literatura e cinema. Assinou seis peças de teatro, quatro encenadas em São Paulo: Típico Romântico (1992), Rancor (1993), Don Juan (1995) e Sonho de Núpcias (2002). Queda Livre (2003), um dos mais de dez livros que escreveu, é uma coletânea de sete ensaios que ele chamou de “investigações participativas”. Nele, o autor de novo se lançou em território desconhecido e pedregoso, mas, dessa vez, literalmente. Portador declarado de acrofobia, descreve o dia em que saltou de paraquedas. Tímido, sobe ao palco para relatar a experiência de enfrentar uma estreia como ator. Aferrado à lucidez, conta como foi mergulhar na embriaguez alucinógena do chá do santo-daime.
O jornalista tinha 5 anos quando seu pai comprou a Folha, na época um jornal quebrado. Segundo de quatro filhos, não planejava comandar a empresa. Começou a dar expediente lá aos 18 anos, por insistência do pai. Foram nove anos até assumir a direção do jornal, em meio à campanha pela redemocratização do país. Por influência sua, a Folha encampou o movimento pelas diretas — passou a publicar os locais e horários dos comícios que ocorreriam em todo o território nacional, como em uma agenda cultural. Em 1986, dois anos depois de Frias Filho passar a dirigir a publicação, a Folha se tornou o diário de maior circulação do país.
O jornalismo idealizado por ele era, como rezava o mantra que criou, “apartidário, plural e crítico”. Frias Filho, no entanto, era o primeiro a reconhecer as limitações desse modelo. No artigo de fevereiro, escreveu que a primeira edição do Manual, cujos “comandos categóricos” classificou como “draconianos”, tinha por objetivo diminuir a incidência de erros, “amainar o efeito dos vieses” e dotar o jornal de instrumentos de autocorreção (foi com ele que a Folha criou a coluna “Erramos” e se tornou o primeiro jornal brasileiro a adotar a figura do ombudsman). Para Frias Filho, o objetivo da empreitada de 1984 foi “realizado apenas em parte”. O jornalismo, no entanto, escreveu, mesmo com suas “severas limitações”, mesmo por vezes sendo “um mal”, segue necessário. Por dois motivos: “municia seus leitores de ferramentas para um exercício mais consciente da cidadania” e “serve como arena de ideias e soluções”. E concluiu: “O livre funcionamento das várias formas de imprensa, mesmo as sectárias e as de má qualidade, corresponde em seu conjunto à respiração mental da sociedade”.
Otavio Frias Filho morreu no último dia 21, aos 61 anos, de um câncer iniciado no pâncreas. Com a mulher, Fernanda Diamant, editora da revista literária Quatro Cinco Um, teve as filhas Miranda, de 8 anos, e Emília, de 1.
Publicado em VEJA de 29 de agosto de 2018, edição nº 2597