Há quatro meses, a delação dos executivos da JBS provocou o tremor político de maior intensidade desde o início da Lava-Jato. Em segredo, os executivos da empresa gravaram conversas com o presidente da República, filmaram entregas de dinheiro, apresentaram planilhas e envolveram mais de 1 800 políticos em transações financeiras suspeitas. Em troca, ganharam o maior dos benefícios já concedidos aos envolvidos no escândalo: a imunidade total. Mesmo tendo confessado centenas de crimes, o grupo, além da liberdade, manteve seu patrimônio — carros, aviões, lanchas, mansões, imóveis no exterior. Um acordo de leniência também permitiu que a empresa continuasse operando, inclusive em negócios com o próprio governo. No domingo 10, esse mundo aparentemente perfeito para os delatores começou a ruir. Joesley Batista, um dos sócios do conglomerado, foi preso sob a acusação de ter omitido crimes em seu acordo de delação e sob a suspeita de ter contado com a ajuda profissional, às escondidas, de um auxiliar do procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Joesley e um de seus subalternos, Ricardo Saud, também preso provisoriamente, prestaram depoimento, deram sua versão para uma conversa em que gravaram a si mesmos e ficariam detidos por cinco dias até que os investigadores checassem as informações para avaliar se o acordo de delação havia sido comprometido. Apesar da gravidade das suspeitas, não era ainda o pior. Os executivos justificaram que a gravação, aparentemente feita por descuido, se resumia a uma “conversa de bêbados”. As citações comprometedoras a respeito de algumas autoridades, segundo eles, não passavam de bravatas. Os irmãos também negaram que Marcello Miller, o auxiliar do procurador-geral, tivesse prestado assessoria informal ao grupo. Na quarta-feira 13, o caso sofreu uma nova reviravolta.
Uma investigação da Polícia Federal demonstrou que os donos da JBS continuaram praticando crimes mesmo durante a negociação do acordo de delação com o Ministério Público. Os policiais descobriram que, valendo-se do previsível abalo sísmico que os depoimentos provocariam no mercado financeiro, Joesley e Wesley fizeram bilionárias transações que envolveram contratos futuros de dólar e manipularam operações de compra e venda de ações das empresas do grupo. Peritos que trabalharam no caso estimam que, às vésperas de a delação vir a público, eles faturaram mais de 100 milhões de reais no mercado financeiro. A revelação, por si só, já seria suficiente para cancelar todos os benefícios concedidos aos empresários, mas descobriu-se mais.
Durante a investigação, a PF teve acesso aos arquivos do celular de Wesley Batista e acabou, quase que por acidente, colhendo fartas evidências sobre a parceria entre a cúpula da JBS e o ex-procurador Marcello Miller, que fora braço-direito de Rodrigo Janot na Lava-Jato. Os agentes descobriram que, antes de se desligar formalmente do Ministério Público, Miller já participava de um grupo de WhatsApp com os irmãos Batista e outros executivos da JBS em que eram discutidas, passo a passo, as estratégias da delação. Revelado pelo site de VEJA, o conteúdo das mensagens agravou ainda mais a situação de Miller e, de quebra, foi usado pela Polícia Federal, em eterna guerra com o Ministério Público, para engrossar as suspeitas sobre a conduta de Janot e seus auxiliares mais próximos.
Para os delegados do caso, as mensagens indicam que o gabinete do procurador-geral tinha conhecimento de que Miller pulara para o outro lado do balcão e vinha atuando, “de forma indireta”, nas negociações sobre o acordo de delação. A Procuradoria negou. Nos bastidores, acusou a Polícia Federal de se aproveitar do caso para enfraquecer o MP na sua disputa por poder. “Não quero crer que as conclusões desse relatório tenham a ver com as pretensões relativas à competência da PF para celebrar acordo de colaboração”, queixou-se Janot a VEJA.
Há outras mensagens capazes de sustentar as mais variadas teorias da conspiração. Os donos da JBS discutem, por exemplo, os termos de uma proposta agressiva para que Miller os ajudasse a “atravessar a tempestade” e trocam impressões, a certa altura, sobre o impacto que as revelações dos dois teria sobre o governo do presidente Temer. “Não sei, não, estou com a impressão de que a velocidade está ligada a não dar tempo de deixar a turma que está aí conquistar avanços, tanto do lado do julgamento lá, que começou anteontem, como do lado de reformas, essas coisas”, comentou Wesley com o irmão. A PF viu nesse diálogo uma demonstração cabal de que os dois tinham a noção exata do poder de fogo daquilo que contariam na delação. “Esse trecho mostra como Wesley entendia que as informações encaminhadas à Procuradoria teriam capacidade de ‘derrubar’ o presidente”, escreveram os investigadores — o que, convenhamos, não chega a ser uma conclusão inalcançável por mentes mundanas. As mensagens deram origem a nova apuração, em que os irmãos Batista e o ex-procurador serão investigados por corrupção.
Mesmo com a decisão de reavaliar o prêmio da delação da JBS, a suspeita sobre uma parceria ilegal entre a Procuradoria-Geral da República e a JBS pôs Janot sob crítica cerrada às vésperas de deixar o cargo. Teriam os donos e executivos da JBS obtido os benefícios generosos por causa de sua ligação estreita com Miller, até há pouco braço-direito do procurador-geral? Janot sabia desse vínculo? Foi Miller quem orientou Joesley Batista a gravar clandestinamente o presidente Temer? Para turvar ainda mais o cenário já repleto de teorias, no sábado 9, um dia depois de pedir a prisão dos executivos, Janot foi fotografado em um bar em Brasília conversando com Pierpaolo Bottini, advogado da JBS. Os dois disseram que o encontro foi fortuito e que trataram apenas de amenidades, mas a explicação não parou em pé. Na verdade, o próprio procurador, frequentador assíduo do estabelecimento, pediu aos funcionários que colocassem uma mesa num canto escondido, entre engradados de cerveja, de modo que pudesse ter com o advogado da JBS uma conversa sem testemunhas — o que só faz desconfiar que a tal conversa foi além das amenidades.
Com reportagem de Hugo Marques
A mensagem e o mensageiro
Na edição passada, VEJA revelou o conteúdo de arquivos entregues ao Ministério Público com evidências de que a JBS ocultara em sua delação sucessivas tentativas de comprar sentenças em tribunais superiores. A reportagem desencadeou diversos pedidos de investigação. A OAB classificou as suspeitas como “graves e preocupantes” e pediu às autoridades competentes celeridade na apuração. O ministro da Justiça, Torquato Jardim, determinou que a Polícia Federal abrisse inquérito. As evidências, uma coleção de mensagens e gravações de uma advogada da JBS descrevendo investidas suspeitas sobre três ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foram enviadas à Procuradoria-Geral da República.
O caso deflagrou uma crise interna no tribunal. Em nota oficial, a ministra Laurita Vaz, presidente da corte, cobrou rápida investigação sobre os “fatos graves” que, em suas palavras, “atingem a dignidade e a honradez do tribunal e de seus membros”. “A sociedade não pode conviver com qualquer tipo de dúvida sobre a honra e a isenção de membros do Superior Tribunal de Justiça, cuja respeitabilidade é premissa inarredável para o pleno exercício da jurisdição”, diz o texto. Os ministros cujo nome aparecia nas mensagens da JBS não gostaram do tom da manifestação oficial. Queriam uma defesa corporativa, jogando tudo para debaixo do tapete, mas não foi o que aconteceu.
O grupo de WhatsApp que reúne os integrantes da corte ardeu em críticas à presidente. Citado nas tramoias dos advogados da JBS, o ministro João Otávio Noronha foi um dos mais veementes: “Laurita, se você não tem coragem e estrutura emocional para defender os membros da casa, que aliás te elegeram presidente, não os exponha como acaba de fazer”. Ele prosseguiu, dirigindo-se à colega: “Continue a lavar as mãos para os problemas institucionais, mas não ofenda mais aqueles que já vêm sendo injustamente atacados”. Napoleão Nunes Maia, também citado nas mensagens suspeitas, alinhou-se ao protesto: “Excelente a sua repulsa. Concordo tim-tim por tim-tim, tudo por tudo. Lamentável. Entristecedor. Preocupante”. Diante da posição firme da presidente, Noronha subiu ainda mais o tom na sessão do Conselho Nacional de Justiça, no dia seguinte. Desta vez, porém, o alvo do ministro era VEJA e seus jornalistas. No entender de Noronha, a revista não deveria ter publicado a reportagem. Pouco falou dos advogados que envolveram a ele mesmo e sua filha no enredo que mistura tráfico de influência, dinheiro e corrupção. Mas, para quem é contra investigar suspeitas, até que faz sentido.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2017, edição nº 2548