A crônica dos escândalos atuais registra casos de amizades fraternas que acabaram em confusões de diversas grandezas. Esta reportagem e as que vêm nas páginas seguintes têm em comum histórias que envolvem autoridades e amigos de autoridades com negócios, poder e dinheiro. Histórias aparentemente miúdas, como a da assessora do atual chanceler que desinibidamente pede ajuda a um empreiteiro (veja a reportagem na pág. 50). Histórias dramáticas como a do ex-governador Eduardo Campos, que morreu em um desastre aéreo em 2014 e agora é acusado de manter um esquema clandestino de arrecadação de propina nos moldes do petrolão. E histórias como a que se desdobrará a seguir, mostrando uma sociedade imobiliária entre o presidente da República e o advogado José Yunes, seu amigo e ex-assessor.
A sociedade não tem nada de ilegal, até onde se sabe, mas a curiosidade inicial é que Temer e Yunes estão, ambos, sob investigação por corrupção. Yunes, amigo do presidente há meio século, entrou para o rol dos investigados ao ser tragado pela delação premiada da Odebrecht: um dos delatores contou que, em 2014, a pedido de Temer, a empreiteira repassou propina de 10 milhões de reais a pessoas da confiança do então vice-presidente. Yunes, segundo esse testemunho, foi o destinatário de parte do valor. Diante disso, ele tomou a iniciativa de prestar um depoimento dizendo que recebera um envelope lacrado em seu escritório e não sabia que se tratava de dinheiro. Segundo a versão de Yunes, quem apareceu em seu escritório para deixar o “envelope lacrado” foi o doleiro Lúcio Funaro, operador do PMDB. O amigo de Temer disse que Funaro chegou, deixou o pacote e foi embora sem dar explicações. Atropelado pelas suspeitas, Yunes demitiu-se do cargo de assessor de Temer, para o qual fora nomeado assim que este assumiu a Presidência, mas seu fantasma vez por outra reaparece no Palácio do Planalto.
Um levantamento feito por VEJA mostra que alguns dos bens mais valiosos que a família presidencial possui atualmente tiveram Yunes como proprietário anterior. Os imóveis — uma casa, duas salas comerciais e um andar inteiro em um prédio em São Paulo — foram vendidos à família de Michel Temer por Yunes e por empresas ligadas ao advogado, em transações que nem sempre seguiram o padrão convencional — embora, repita-se, não haja nelas ilegalidades constatadas. A mais vultosa das operações envolve a compra de todo um andar de um prédio comercial de luxo erguido numa das regiões mais valorizadas de São Paulo. O edifício foi construído por uma empresa controlada pela família de José Yunes. Oficialmente, Temer passou a ser dono do andar em 2011, quando já era vice-presidente. Segundo o registro em cartório, ele pagou pelo conjunto módicos 2,2 milhões de reais — à época em que a transação foi oficializada, imóveis similares na mesma região eram vendidos por três vezes mais (hoje, um conjunto semelhante está no mercado por 14 milhões de reais).
Pela letra fria dos documentos, Temer fez um negócio fantástico. Ele diz que pagou os 2,2 milhões à empresa da família de José Yunes em 2003, três anos antes do lançamento do empreendimento, o que costuma ser, de fato, vantajoso. A escritura do imóvel apenas menciona que as partes firmaram um contrato de gaveta, ou seja, que não chegou a ser registrado em cartório. VEJA pediu a Temer permissão para consultar o documento, mas a Presidência da República não autorizou o acesso. Procurado, Yunes disse que não sabia de nada. “Eu não participei disso, não participava da empresa e não tenho nada para falar”, afirmou. A Yuny, a empresa fundada pelo advogado e hoje controlada pelos seus filhos, declarou que o negócio com Temer foi normal e obedeceu às práticas de mercado.
Outro negócio que une José Yunes e a família presidencial envolve uma casa no bairro Alto de Pinheiros, região nobre da capital paulista. Em junho de 2010, Yunes registrou a compra do imóvel, pelo valor declarado de 750 000 reais. Um mês depois, ele o revendeu à primeira-dama Marcela Temer por 830 000 reais. O Planalto diz que Michel Temer fez uma doação à sua mulher para que ela tivesse dinheiro para adquirir a casa — e garante que a primeira-dama, de fato, entregou todo o dinheiro a Yunes. Também nesse caso, o valor da transação declarado oficialmente está aquém do praticado pelo mercado. Corretores consultados por VEJA dizem que, à época, a casa valia pelo menos o dobro do que foi declarado. A VEJA, Yunes disse que comprou o imóvel para investir. “Depois, a Marcela se interessou na casa, porque é perto de onde ela e Temer moram.” Até hoje, o amigo do presidente é o responsável por administrar o imóvel.
Um terceiro negócio que liga Yunes a Temer foi acertado há mais tempo, em dezembro de 2000. Trata-se da venda de duas salas comerciais, também em São Paulo. Pelos imóveis, Temer declarou haver pago 380 000 reais à Quality Building, a empresa de José Yunes que, mais tarde, se transformaria na Yuny. Também nesse caso, o edifício foi construído pelo amigo do presidente. E, a exemplo dos outros negócios, o valor declarado está abaixo do real: à época, as duas salas valeriam pelo menos o dobro.
Em valores atuais, os imóveis vendidos por Yunes à família de Temer somam 18 milhões de reais. Outra curiosidade: dos imóveis negociados com Yunes, nenhum figura hoje como propriedade do presidente Michel Temer, mas apenas de seus familiares. O andar comercial foi transferido para uma empresa administrada por uma filha do presidente. As salas foram doadas ao filho Michelzinho, de 8 anos. Um detalhe também curioso: na doação ao filho, o presidente teve de pagar quase 80 000 reais de imposto — e o valor foi quitado em espécie em uma agência bancária de São Paulo. É incomum que se pague despesa tão alta com dinheiro vivo. O Planalto informou que os negócios entre Yunes e o presidente foram absolutamente normais, que os valores “foram de mercado” e que os pagamentos foram feitos “com cheques de contas pessoais de Michel Temer”.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2017, edição nº 2540