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O escritor torna-se ficção

Nos diários que foram sua última grande obra, o argentino Ricardo Piglia borra a fronteira entre vida real e imaginada, convertendo a si mesmo em personagem

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 3 nov 2017, 06h00 - Publicado em 3 nov 2017, 06h00

Em 1963, então com 23 anos, Emilio Renzi registra, em um dos cadernos da marca Congreso nos quais escreve seus diários, que finalmente “deixara de ser inédito”: publicara seu primeiro conto e uma resenha de O Ofício de Viver, reunião dos diários do escritor italiano Cesare Pavese. A dupla estreia não poderia ser mais significativa: o sentido de desvelamento real de uma personalidade, que faz do diário o gênero que é, e o exercício da imaginação criadora, que ganha forma na realização da literatura de ficção, marcariam uma preocupação constante em toda obra do autor iniciante. Emilio Renzi é ao mesmo tempo uma personalidade real e uma ficção. Trata-se do alter ego de Ricardo Piglia (1940-2017). O fato de o consagrado ficcionista e ensaísta argentino ter optado por publicar os diários que manteve de 1957 a 2015 na voz de sua criatura é apenas mais uma prova de que as fronteiras entre vida real e vida imaginada sempre estiveram no centro de suas preocupações como escritor.

Os Diários de Emilio Renzi — Anos de Formação, de Ricardo Piglia (tradução de Sérgio Molina; Todavia; 384 páginas; 74,90 reais ou 49 reais em versão digital) (//Divulgação)

Recém-lançado no Brasil, Os Diários de Emilio Renzi — Anos de Formação é o primeiro de três volumes que Piglia, morto em janeiro em decorrência de uma doença degenerativa (esclerose lateral amiotrófica), organizou como sua publicação derradeira. O interesse por essa forma literária muito particular, o diário, já era notável no adolescente de 17 anos que decide escrever o seu (leia abaixo sobre outros escritores que se exercitaram no gênero). Dez anos depois, já autor publicado e atraindo as atenções do rico ambiente cultural de Buenos Aires, Piglia, na voz de Renzi, escreveria que os diários poderiam servir para que se conhecesse “o projeto de alguém que decide ser escritor e depois começa a escrever”. Servem para muito mais que isso: retratam o universo de um autor em formação, apresentando a nós, seus leitores, como foram suas leituras, de que matéria-prima se constituiria sua ficção futura, e como sua educação sentimental, entre família, amigos e amores, definiria o homem e o escritor. A prosa de qualidade sempre invulgar de Piglia permite que se leiam os diários de seus anos de formação — de 1957 a 1967 — como um grande romance.

O autor de Respiração Artificial (romance em que Renzi é o narrador) tinha consciência da natureza literária do material que ia escrevendo. “Reler meus cadernos é uma lição de narrativa”, anota em uma segunda-feira de maio de 1965. O registro tinha um sentido preciso: à sucessão dos dias, que dita o ritmo das entradas e observações próprias de um diário, soma-se a percepção da insistência de certos motivos, das repetições que configuram o personagem (que é também o autor). Essa simultaneidade confere ao conjunto sua dimensão literária, pois todos esses elementos dão a conhecer alguém que sabemos ser real, mas que mobiliza nosso interesse como um personagem de ficção. Lemos sobre seus amores — a jovem Elena das correspondências colegiais; a ruiva Vicky, que leu seus diários de calouro na Universidade Nacional de Mar del Plata por engano e acabou se apaixonando por ele; Alcira, a “mulher de vida fácil” com quem o tio Tonho se casara — mais como quem frui o prazer de um romance do que como o curioso interessado na intimidade do jovem escritor Ricardo Piglia. Acompanhamos suas decisões pessoais — a escolha da universidade, o engajamento político de juventude, as primeiras publicações — como quem assiste ao desenrolar de uma trama romanesca. Quase torcemos por Piglia. O próprio autor aponta, quando relê o diário: “O tempo todo me espanto, como se eu fosse outro (e é isso que eu sou)”.

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Parte dessa sensação de que se está diante de uma construção ficcional deve-se ao modo como o diário vem pontuado por intervenções do escritor já maduro, que organiza e comenta suas notas de juventude. É pela voz segura desse narrador experimentado que ficamos sabendo como a jovem Elena, uma paixão colegial, foi decisiva para formar o leitor Ricardo Piglia: se um dia Elena não tivesse perguntado o que ele estava lendo, nosso herói não teria se apressado em buscar na memória um título para impressionar a mocinha. Não teria se lembrado de ter visto, na vitrine de uma livraria, A Peste, e não teria mentido que estava lendo o romance de Albert Camus. No afã de não perder o interesse da menina, Piglia viu-se forçado a comprar o livro e a ler tudo em uma noite só. O mundo ganhou um leitor apaixonado, decidido a ser escritor, e Elena pôde pedir o livro emprestado.

Muitos episódios satisfazem o voyeurismo do leitor aficionado: são abundantes as impressões de leitura, os filmes, os encontros amorosos e as amizades fugazes ou duradouras. Outros parecem ficção pelo caráter improvável: o jovem contista ainda inédito encontra Jorge Luis Borges e tem a ousadia de afirmar que o final de um dos contos do mestre, A Forma da Espada, era problemático. A satisfação maior da leitura, porém, está sempre no acesso à consciência do escritor em formação. “É preciso evitar a sacralização da literatura transformada num absoluto”, diz Piglia (ou Renzi), apontando o argentino Ernesto Sabato como representante dessa reverência literária. Mas ele também recomenda evitar o simples relato da própria vida, sem preocupações formais, como faria o americano Henry Miller. Ao concluir que “os diários evitam essas duas ilusões e montam um caminho incerto e frágil”, o jovem escritor que ainda não tinha sequer um volume publicado demonstrava uma consciência literária bastante amadurecida.

“Sem um rastro da minha vida, é impossível narrar, ou pelo menos não posso acreditar naquilo que conto se não estiver pessoalmente envolvido”, diz o autor. Piglia decidiu ser escritor e depois escreveu. Fiel ao projeto, esteve à altura da decisão tomada.

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A literatura na intimidade

Outros quatro escritores que, como o argentino Ricardo Piglia, deixaram diários que ganharam estatuto de obra-prima

Joseph Conrad (1857-1924)

Joseph Conrad (1857-1924)
(Bettmann/CORBIS/Getty Images)

Em 1890, o marinheiro-escritor britânico (polonês de nascimento) fez uma incursão ao Congo, então domínio do rei belga Leopoldo II. Seu Diário do Congo é sucinto e objetivo: registra lugares, incidentes, paisagens — e eventuais cadáveres ao longo do caminho. Seria a base de Coração das Trevas, novela que faz um retrato devastador da exploração do Congo


Franz Kafka (1883-1924)

Franz Kafka (1883-1924)
(Bett Mann)

Os diários que o escritor checo começou em 1910 podem ser lidos como uma obra paralela à sua ficção. Em prosa densa e às vezes enigmática, o autor de A Metamorfose e O Castelo reflete sobre eventos cotidianos e pequenos dramas familiares e se estende em considerações sobre sua devoção à escrita. “Tudo o que não é literatura me aborrece”, diz Kafka


Cesare Pavese (1908-1950)

Cesare Pavese (1908-1950)
(Biblioteca di Roma/Reprodução)

O escritor italiano começou o diário em 1935, acossado pelos fascistas, e escreveu até às vésperas do suicídio, em 1950. “Não resta mais nada a desejar nesta terra”, registrou no último ano. Ricardo Piglia fez sua estreia como crítico com uma resenha desse diário, publicado postumamente com o título O Ofício de Viver


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
(Arquivo/Estadão Conteúdo)

Publicado em 1985, O Observador no Escritório é uma seleção do diário do poeta mineiro. Reservado, o autor não incluiu aqui nada de íntimo, mas compôs um quadro vivo de seu tempo. Dois momentos saborosos: o encontro de Drummond, em 1945, com o líder comunista Luís Carlos Prestes, e a opinião (desfavorável) do velho modernista sobre a Poesia Concreta

Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2017, edição nº 2555

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