“Se ele marcar mais gols, eu viro muçulmano também.” O canto da torcida do Liverpool de louvação ao atacante egípcio Mohamed Salah, 25 anos, é extraordinário em um país, a Inglaterra, como tantos outros da Europa e das Américas, que cultiva a islamofobia quase como um esporte. Salah, o Faraó, estufou a rede 44 vezes nesta temporada. Não há, a bem da verdade, notícia de conversões religiosas, mas seu sucesso é uma das mais interessantes histórias do futebol na atualidade. Apesar de jogar em uma seleção sem chance alguma na Copa do Mundo da Rússia, o Egito, de pálida tradição nos gramados, Salah era tido como uma das estrelas, capaz de rivalizar, ao menos no carisma, na velocidade e na habilidade, com nomes incontornáveis como Neymar, Messi e Cristiano Ronaldo.
Tudo corria bem, a caminho da consagração, até Salah dar de frente com o zagueiro espanhol Sergio Ramos na final da Liga dos Campeões da Europa no sábado 26 (o Real ganhou por 3 a 1). Aos 25 minutos do primeiro tempo, numa disputa de bola, Ramos puxou o braço direito de Salah e o levou ao chão. O camisa 11 do Liverpool teve uma entorse nos ligamentos do ombro esquerdo. Saiu de campo chorando e com o horizonte embaçado pela dúvida. Não foi uma lesão muito grave, mas tê-lo em plena forma na Copa deixou de ser uma certeza. Serão pelo menos três semanas de recuperação. Ele talvez perca a partida de estreia do Egito contra o Uruguai, em 15 de junho, mas deve poder jogar contra a Rússia e a Arábia Saudita, os outros times do grupo A. O espanhol Ramos correu ao Twitter e desejou melhoras a Salah. Foi xingado de tudo quanto é jeito, em tudo quanto é idioma. O ex-atacante da seleção egípcia Mido engrossou a grita ao escrever na rede social que o espanhol machucara Salah intencionalmente. A União Europeia de Judô apelou para a ironia e comparou o grotesco puxão ao waki-gatame, uma técnica de chave de braço proibida por ser muito perigosa.
Salah, que já era muito popular, ganhou ainda mais notoriedade. Uma análise sobre as buscas relativas a seu nome no Google mostra que o interesse atingiu o nível mais alto em um ano. Desde a final da Liga dos Campeões, Salah chegou a superar em 25 vezes o número de pesquisas associadas a Neymar. Teve índices muito semelhantes aos de Cristiano Ronaldo e Lionel Messi, os vencedores dos últimos dez prêmios de melhor jogador do mundo. As perguntas sobre o tema, em diversas línguas, foram óbvias: “O que aconteceu com Salah?”, “O que Sergio Ramos fez com Salah?” e “Salah está fora da Copa?”. As buscas explodiram em todo o mundo, mas especialmente no Egito, onde ele é tratado com reverência e simpatia inigualáveis. Em março, o jogador recebeu 5% de votos na eleição presidencial — evidentemente não era candidato, mas só ficou atrás de Abdel Fattah al-Sisi, eleito com 92% dos sufrágios. Al-Sisi, aliás, ainda na noite da contusão de Salah, fez questão de escrever (no Twitter, como sempre) uma mensagem de apoio ao craque, chamando-o de “herói”.
Não é difícil entender por que o povo egípcio tem tanto carinho pelo jogador do Liverpool, especialmente os muçulmanos (90% da população é adepta do Corão). Salah é adorado por nunca ter deixado de lado os costumes religiosos. Após cada gol, faz o movimento islâmico do sujud, a reverência com os joelhos, as mãos e a testa apoiados no solo. Pratica o Ramadã, o período de renovação da fé para os muçulmanos, no qual passam o mês jejuando do nascer ao pôr do sol. Agora em 2018, o Ramadã começou em 17 de maio, e calhou de coincidir com a final da Liga dos Campeões e a estreia do Egito na Copa. Mesmo assim, Salah não abdicou de sua fé. Faz questão, ainda, de ajudar diretamente bairros pobres do Cairo e de outras cidades do país, especialmente seu vilarejo natal, Nagrig. Ele dá dinheiro para a construção de escolas, para a manutenção de hospitais e a compra de ambulâncias. Numa nação encurralada entre o fundamentalismo islâmico e a ditadura militar, apesar da existência de eleições, Salah é a única unanimidade.
Não foi surpresa, portanto, que o choro da dor no ombro tenha levado a ondas de comoção no Egito. Para quem acompanha futebol, e acredita em milagres, sem paciência para esperar a evolução médica da lesão, rapidamente veio à mente uma imagem clássica do alemão Franz Beckenbauer. Na semifinal da Copa de 1970, ele sofreu uma falta dura do zagueiro italiano Pierluigi Cera e lesionou o ombro, como Salah. A Alemanha já não podia mais fazer substituições. Com uma tipoia no braço, Beckenbauer desfilou sua elegância sutil nos minutos finais do tempo normal e nos trinta minutos da prorrogação. Não impediu a derrota, mas foi unanimemente celebrado. Seria bonito e louvável ver Salah assim durante a Copa, mas gestos de sacrifício deixaram de ser aceitos no futebol. Os médicos não os autorizam, de modo a preservar a sanidade física dos atletas.
“O futebol hoje tem uma intensidade muito forte. É impossível que um jogador de velocidade como o Salah possa jogar imobilizado”, diz Paulo Zogaib, fisiologista e médico do esporte da Universidade Federal de São Paulo. Até que Salah volte a disputar uma partida oficial, ele fará parte do elenco de craques que, às vésperas de uma Copa, se machucaram e deixaram preocupada a torcida. No caso dele, um país inteiro. Não há com Neymar, nem de longe, a mesma preocupação, mas os primeiros passos do camisa 10 de Tite depois de quebrar o quinto metatarso do pé direito são acompanhados com atenção (leia o quadro ao lado). A espera, que para muitos fãs pode ser angustiante, alimenta o fascínio pelos Mundiais de futebol, espaço para a construção de ídolos perenes. Salah sonha estar entre eles.
Neymar dribla o receio
Um breve gemido durante o aquecimento da seleção brasileira em Londres foi suficiente para chamar a atenção de todos no centro de treinamento do Tottenham. Mas tudo não passou de um susto. Ou melhor, de uma lamentação depois de errar um passe na roda de “bobinho”. O receio de se lesionar novamente — admitido pelo próprio Neymar em recentes entrevistas — parece diminuir a cada dia. O sorriso, exibido em incontáveis piadas com o parceiro de ataque Gabriel Jesus, não deixa dúvidas. O camisa 10 aparenta estar pronto para voltar ao futebol, depois de ter quebrado o quinto metatarso do pé direito, em 25 de fevereiro, numa partida do PSG.
A contusão não foi dramática como a de Ronaldo, em 2000, que rompeu o tendão patelar do joelho direito e passou dois anos sendo vigiado pelos olhares preocupados dos torcedores e da comissão técnica. Não se compara, também, à fratura de uma vértebra do próprio Neymar em partida contra a Colômbia, na Copa de 2014, que o tirou do jogo do fatídico 7 a 1 que humilhou o Brasil.
Como a intervenção cirúrgica, agora, era simples e não deixaria sequelas, tudo foi acompanhado com mais calma. Colaborou para a travessia tranquila a postura do jogador, que transmitiu sua vida, nesses três meses de recuperação, pelo Instagram — quase sempre rindo. A preocupação com Neymar passou a ser mais com a cabeça do que com o pé. Ambos parecem bem.
Nos treinos em Londres, ele demonstrou desenvoltura, mas se cuidou para não pular etapas. Contou, claro, com a complacência dos marcadores. “Sempre acabo dando uma pisadinha no pé do Neymar, porque ele é muito habilidoso, mas tenho maneirado um pouco. Por enquanto é só carinho”, divertiu-se o lateral Danilo. Tite sabe que os adversários não serão tão gentis. A expectativa é que Neymar atinja o auge a partir das oitavas de final da Copa — desde que o Brasil chegue lá, é claro. Espera-se que, antes da estreia contra a Suíça, ele entre em campo alguns minutos nos amistosos contra a Croácia e a Áustria.
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2018, edição nº 2585