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O dândi do sertão

Desprezado pelos pares acadêmicos e amado por galeristas, Flavio Capitulino saiu da Paraíba para vencer. Mas é na sua terra que deseja brilhar a todo custo

Por Marcelo Marthe, de Campina Grande
Atualizado em 10 dez 2018, 09h18 - Publicado em 16 fev 2018, 06h00

Tomar caldinho de camarão na feira é programa ao alcance de qualquer mortal comum na cidade paraibana de Campina Grande. Mas Flavio Capitulino é tudo, menos comum. Com terninho colorido e juba esvoaçante dourado-cajá, ele causa rebuliço ao saltar de seu BMW conversível para visitar o tradicional reduto popular. Escoltado por um segurança, esse Michael Jackson do sertão é parado para fazer selfies. “Você é o orgulho da Paraíba”, diz um fã. Quando um desinformado pergunta a outro quem é o exótico conterrâneo, nota-se que a fama pode ser um troço meio maluco: “Não conhece? Ele restaurou quadros de Sheiquispi (sic)”. Até onde se sabe, o bardo inglês William Shakespeare (1564-1616) nunca pintou um quadro. Mas, se algo tão improvável viesse a ser descoberto, não destoaria em nada dos detalhes inacreditáveis da biografia de Flavio Capitulino.

Proporção e desproporção – Em sua sala de estar: depois de restaurar Renoir e Monet, ele criou o seu próprio Davi (Laílson Santos/VEJA)

Nascido em Sousa, nos confins da caatinga, ele se mudou para Paris na juventude, em 1983, com apenas 80 dólares no bolso, inebriado pela promessa de hospedagem feita por um casal francês que visitara Campina Grande com o objetivo de adotar uma criança. Ele servira de intermediador na empreitada: “Eu conhecia um juiz importante e achei uma senhora que queria dar um menino”. Na França, porém, a recepção não foi tão calorosa. Capitulino teve de se virar como faxineiro, babá e dançarino de lambada nas ruas. Certo dia, convenceu uma madame a deixá-lo reparar o pé de uma mesa de laca chinesa. Impressionada com o resultado, ela o apresentou a uma amiga, que por sua vez o indicou para trabalhar com um restaurador renomado. Capitulino aperfeiçoou-se no ofício, conquistou fama e abriu o próprio ateliê.

Restauradores ligados ao meio acadêmico brasileiro e à administração dos museus franceses olham com desdém para sua falta de formação. Ironicamente, Capitulino sentiu o gostinho da vingança contra os detratores ao ter seu nome envolvido num caso policial. Ele é testemunha-chave num escândalo que explodiu em 2015 e se arrasta na Justiça da França, da Suíça e de Mônaco. Por sete anos, trabalhou para o suíço Yves Bouvier, poderoso comerciante de obras de arte. Numa ocasião, passaram por suas mãos dois retratos que o espanhol Pablo Picasso fez da última mulher, Jacqueline Roque. Mais tarde, por coincidência, Capitulino passou a prestar serviços para Catherine Hutin-­Blay, filha de Jacqueline e uma das herdeiras de Picasso. “Quando vi os mesmos quadros no catálogo dela, comentei que não precisariam ser restaurados, pois eu já tinha feito isso na Suíça”, diz. Sem querer, o brasileiro expôs um crime: os quadros no ateliê de Bouvier haviam sido surrupiados de Catherine por um antigo empregado, que os repassou ao comerciante — que, por sua vez, os vendeu ao milionário russo (radicado em Mônaco) Dmitry Rybolovlev. De quebra, outra testemunha contou à polícia que vira com Bouvier a cópia de uma tela de Gauguin feita por Capitulino — que chegou a ser inquirido por suspeita de falsificação. “Quando famílias tradicionais da Europa vendem uma obra famosa, é comum mandarem fazer cópias. Minha cópia está na parede da madame que a encomendou”, afirma. Capitulino temeu pela vida (“Recebi uma bala de revólver num envelope”), mas não pela reputação. “O que sobrou para mim foi uma grande publicidade. Por vias tortas, fui consagrado na França”, diz.

Idade da loba – O restaurador diante de seu painel com motivo romano: casa com heliponto, flamingos e arte chamativa (Lailson Santos/VEJA)

O caso expõe uma nuance pouco conhecida nesse mercado. Há dois tipos de restaurador de obras de arte. O “oficial” exibe credenciais acadêmicas e normalmente trabalha em museus. Suas intervenções têm caráter científico e são documentadas. Na outra ponta está o restaurador que atende colecionadores e marchands privados. Aí, prevalece a lógica do comércio de carros usados: se o vendedor puder esconder antigas avarias, melhor. “O galerista não tem escrúpulo. Ele gosta de dizer que a obra está em perfeito estado”, diz.

O brasileiro ganhou clientes graças à capacidade de disfarçar defeitos nas obras (confira o quadro abaixo). Para horror dos restauradores oficiais, ele inova ao usar materiais simples, de casca de ovo a cera de abelha. “Flavio tem o dom de recuperar uma obra sem corromper sua alma”, diz o suíço Thomas Seydoux, ex-diretor da Chris­tie’s. “Ele é o melhor cirurgião plástico das artes”, resume o galerista belga Richard Carchon. Nesse mercado às vezes nebuloso, a discrição é bem paga. “Restauradores de museus não ganham dinheiro. Quem trabalha para galerias fatura alto”, diz o francês Damien Boquet, também galerista.

Alto, sim: num único mês de trabalho para Bouvier, Capitulino faturava até 80 000 reais. Ele poderia gastar seu dinheiro em Paris ou Nova York. Mas prefere a Paraíba. Faz isso por amor às raízes, mas também para acertar contas com o passado: “Sofri humilhação em casa e bullying na escola. E riram quando disse que ia vencer em Paris”. Capitulino comprou seu BMW à vista (280 000 reais). Aluga helicóptero para se deslocar do aeroporto do Recife a Campina Grande (6 000 reais por viagem). Abalou Campina ao aterrissar ao lado de um restaurante e circular com segurança protegendo-o com uma sombrinha. “Ele não passa despercebido. É o estilo Flavio Capitulino de ser”, diz Celino Neto, colunista social da cidade.

“Na minha terra, você só é doutor se tiver dinheiro. Mais vale ter um BMW que um diploma”, diz o restaurador. Por essa régua, sua casa vale por uma cátedra na Sorbonne. A propriedade, de 5 000 metros quadrados, abriga lagos com peixes raros, flamingos e outras aves exóticas. A sala é decorada com obras de arte e um Davi de Michelangelo adaptado à função de pilar. “Eu mesmo ensinei as proporções a um artista daqui”, diz. Na área externa, há um painel da Loba Capitolina, aquela que amamenta os fundadores de Roma (referência óbvia ao nome do senhor da mansão). A casa tem um elevador panorâmico e outro privê, acolchoado; nos banheiros, cubas folheadas a ouro e duchas de 4 metros de altura. No guarda-roupa há dezenas de ternos e sobretudos (“Nunca vou precisar em Campina, mas adoro”) e uma coleção de 300 gravatas. O quarto, todo no estilo Luís XV, custou 600 000 reais. Mas a marca mais pitoresca da construção é o heliponto. “Se isso não for extravagância, meu Deus do céu!”, empolga-se Celino Neto.

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Em 2009, o tiro no braço que o restaurador levou, no que parece ter sido um assalto a caminho de sua antiga granja, virou notícia na cidade. Capitulino decidiu vender a granja, onde mantinha um zoológico com zebras, felinos e outros animais. Na desilusão com o investimento, pesou também a morte de seus bichos preferidos, um casal de macacos. Foi uma desilusão existencial com o esforço para construir seus marcos em Campina Grande: “Perdi o gosto por tudo”. Agora, as reformas da nova casa tornaram-se sua obra inacabada e inacabável: Capitulino faz as vezes de arquiteto e engenheiro, alterando a planta de modo obsessivo. “Acho que a construção nunca vai terminar. É uma fuga”, diz. Capitulino, de 51 anos, é gay e casado há vinte anos com o conterrâneo Clodomiro Jr. O casal tem dois filhos adotivos — uma menina de 17 anos e um garoto de 13. Enquanto ele trabalha na França, a família vive em Campina Grande. “Eu saí daqui como mamona, uma planta daninha que todos desprezam. Lá fora, virei palmeira-imperial. Mas, quando volto, faço questão de ser mamona de novo.” Uma mamona, é claro, très scandaleuse. 

https://www.youtube.com/watch?v=y5ul1bysXJU

Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2018, edição nº 2570

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