O crime contra uma voz
Marielle Franco é a primeira vítima política da barbárie do Rio. Ela foi executada, a tiros, e deixou uma indagação: a quem interessava seu assassinato?
Rio de Janeiro, quinta-feira, 15 de março. Sob um sol de quase 40 graus, uma multidão se reuniu nas escadarias do Palácio Pedro Ernesto, onde fica a Câmara Municipal, para homenagear Marielle Franco, a vereadora de 38 anos executada com quatro tiros na cabeça na noite anterior. Marielle era novíssima na política: eleita pelo Psol em 2016, com 46 500 votos (a quinta maior votação), entrava no segundo ano de mandato. Voz vibrante a favor das mulheres, dos negros, dos homossexuais e dos favelados — categorias em que se encaixava pessoalmente —, tinha intensa atuação dentro e fora da Câmara. A morte brutal a agigantou, ao adicionar um componente político ao inaceitável caldeirão de violência que engolfa o Rio: os disparos abateram uma pessoa eleita pelos cariocas para representá-los. Exato um mês depois de instalada, a intervenção militar nas polícias fluminenses, que imaginava ter tempo para agir, vê-se encostada na parede. “A ação federal foi desafiada pelo assassinato de Marielle”, diz a cientista social Silvia Ramos, especialista em segurança pública.
A morte da vereadora foi um ato planejado. Marielle saiu de um encontro de mulheres negras na Lapa, zona central do Rio, por volta das 21 horas. Sentou-se no lado direito do banco de trás do carro, um Chevrolet Agile branco com vidros fumê, junto da assessora; ao volante estava o motorista, Anderson Gomes, de 39 anos. Seguiram para a Tijuca, onde ela morava com a companheira, Mônica. A polícia já sabe que os ocupantes de um Chevrolet Cobalt prata os seguiram por 4 quilômetros, até uma esquina do bairro do Estácio, onde fizeram uma manobra para interceptar o carro da vereadora. Da janela, dispararam nove tiros com uma arma calibre 9 milímetros, de uso exclusivo das Forças Armadas, mirando diretamente o crânio de Marielle — sua assessora só ouviu as rajadas. Não podiam vê-la, mas sabiam onde se sentava. Gomes, que estava na linha de tiro, também foi atingido por três balas e morreu. A polícia já descartou qualquer hipótese que não seja a execução, pelo modus operandi: os criminosos não roubaram nada, já chegaram atirando e sabiam o que estavam fazendo. A assessora não foi ferida, prestou depoimento e, por segurança, seria levada para fora do Rio de Janeiro pelo Psol.
A notícia ganhou as redes e se espalhou com tremenda velocidade — a certa altura, era o assunto mais comentado do mundo no Twitter. Durante reunião com ministros em Brasília, o presidente Michel Temer, ao abrir o encontro, disse que se tratava de “um verdadeiro atentado ao estado de direito e à democracia”. O governador Luiz Fernando Pezão e o prefeito Marcelo Crivella se manifestaram. Artistas lamentaram o crime. O deputado estadual Marcelo Freixo, que levou Marielle para o Psol, chorou ao comentar sua morte. O choque se converteu em marchas nas ruas de pelo menos dez estados brasileiros, que também estão previstas para seis cidades no exterior, entre elas Paris e Nova York. Cartazes diziam: “Intervenção é uma farsa”.
Como no Brasil politicamente polarizado tudo é visto pela lente da deformação ideológica, já apareceram críticas à enorme repercussão do crime, creditando-a ao perfil de Marielle: mulher, negra, lésbica, esquerdista. Nada mais equivocado. Seu assassinato é um símbolo dramático porque se trata de uma execução contra uma voz pública, que detinha um mandato popular. Sua morte traz à memória a carnificina de uma Medellín dos anos 90 em que o crime chegava perigosamente perto de controlar o Estado, ameaçar autoridades e abalar as instituições da Colômbia. Fosse a vítima um homem, branco, heterossexual e direitista, a gravidade não seria um milímetro menor. Por tudo isso, o presidente Temer tocou no ponto nevrálgico: é um atentado à democracia.
Desconsolada em frente ao Instituto Médico-Legal, a irmã mais nova de Marielle, Anielle Silva, desabafou: “É mais uma vítima da ausência de segurança. Dá dor e revolta. Vou lembrar dela pelo sorrisão, pela garra. Espero justiça”. O ministro da Segurança, Raul Jungmann, pôs a Polícia Federal à disposição para ajudar nas investigações, o que o recém-empossado chefe da Polícia Civil fluminense, Rivaldo Barbosa, agradeceu, mas contornou: disse que sua equipe “tem credibilidade e competência para cuidar do caso” — indício de que segue viva a rivalidade entre as forças de segurança, uma das fraquezas no combate ao crime no Rio.
Por que, afinal, Marielle foi executada a tiros? Quem tinha interesse em sua morte? Informações preliminares do governo apontam para o envolvimento de milícias, como são chamados os grupos de ex-policiais que atuam na criminalidade (muitas vezes apoiados por policiais na ativa) e que sempre foram alvo das críticas da vereadora. O motivo mais citado por colegas do Psol é seu ativismo em relação a direitos humanos, escancarado em dois posts no Twitter chamando atenção para a truculência policial nas favelas. “O que está acontecendo em Acari é um absurdo! O 41º Batalhão da PM é conhecido como batalhão da morte”, escreveu Marielle em 10 de março, sobre uma operação da PM na favela da Zona Norte. Três dias depois, voltou à carga, falando de uma morte no Jacarezinho, na mesma região: “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando na conta da PM. Quantos mais vão precisar morrer para que esta guerra acabe?”.
“Marielle tinha uma atuação que apresentava perigo para determinados setores. Não se executa uma vereadora como ela sem que isso tenha relação com as denúncias que estava fazendo”, diz o vereador Tarcísio Motta, pré-candidato do Psol ao governo do Rio, que considerava fortemente ter a parlamentar como sua vice. “Ela sabia que seu discurso e a sua própria figura incomodavam: mulher, negra, da periferia, mãe ainda na adolescência, homossexual. Às vezes se cansava, mas logo voltava ao habitual bom humor”, diz Manoela Miklos, 34 anos, doutora em relações internacionais, feminista e amiga de Marielle.
A violência policial não era o único assunto das mensagens da vereadora, nem o mais frequente. Muitos comentários se referiam à situação da mulher, ao racismo e à homofobia , entremeados de críticas ao governo Temer e à intervenção na segurança do Rio de Janeiro. Mas é certo que o modo de agir da PM a incomodava — uma amiga morreu em fogo cruzado no Complexo da Maré. Em entrevista após ter sido eleita, Marielle contou que na mocidade era católica praticante e atuava na Pastoral da Juventude. Em seguida passou por um período em que curtia “baile, torcida, farra” — e aí ficou grávida da única filha, Luyara, de 20 anos, que criou sozinha e hoje mora com a tia Anielle. A gravidez adiou a entrada na universidade, mas aos 22 anos Marielle começou o curso de sociologia na PUC do Rio e depois fez mestrado em administração pública na Universidade Federal Fluminense. Ela viria a trabalhar uma década como assessora parlamentar de Freixo na área de direitos humanos e tinha bom trânsito em todas as alas. Não era radical, tinha diálogo com todas as correntes e uma atuação respeitada. Vaidosa, vestia-se com roupas e adereços coloridos ao estilo africano. Gostava de batom forte e de turbantes, que, segundo ela, “trazem realeza à mulher negra”.
No seu velório (de caixão fechado) na Câmara de Vereadores, entre gritos de “Marielle presente”, a mãe, Marinete, repetia chorando: “Ela não merecia isso”. No Facebook, Luyara, a filha, escreveu: “Mataram minha mãe e mais 46 500 eleitores”. Cerca de 60 000 pessoas são assassinadas por ano no Brasil. Não há estatísticas para medir quantas delas são executadas, como foi Marielle, mas sabe-se que não se trata da maioria. No Rio de Janeiro, 5 322 pessoas morreram violentamente em 2017 (469 só no último mês de janeiro). Decretada para pôr ordem na segurança, a intervenção militar anunciada logo depois do Carnaval teve, até agora, duas medidas visíveis. Uma foi a mudança da cúpula das polícias; outra, a presença diária na Vila Kennedy, transformada em “laboratório” da ação. A execução de uma vereadora exige que se passe, sem demora, da fase de teste à de ação. Enquanto isso não ocorrer, a pergunta da vereadora precisará ser refeita: “Quantas Marielles vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”.
Publicado em VEJA de 21 de março de 2018, edição nº 2574