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O bitcoin é uma bolha clássica

Nobel de Economia diz que ansiedade e sentimento de frustração com as mudanças trazidas pela tecnologia fazem com que as pessoas apostem nas criptomoedas

Apresentado por Atualizado em 2 fev 2018, 06h00 - Publicado em 2 fev 2018, 06h00

Professor de economia comportamental da Universidade Yale, nos Estados Unidos, o economista Robert Shiller ganhou o Prêmio Nobel em 2013 por um trabalho acadêmico em que conseguiu prever o curso dos preços de ações com um longo período de antecedência. Seus achados, feitos em parceria com os economistas Eugene Fama e Lars Peter Hansen, permitiram antever os efeitos da crise financeira nas bolsas americanas em 2008. Hoje, trabalhando em um novo livro cujo título será Narrative Economics (“A Economia da Narrativa”), Shiller tem se dedicado a analisar o comportamento dos investidores de bit­coin. A moeda virtual, segundo o economista, é uma “bolha clássica”. “As criptomoedas acabam dando um sentimento de poder a muitas pessoas que antes estavam se sentindo impotentes”, disse o professor a VEJA, em entrevista feita em Davos, na Suíça, durante o Fórum Econômico Mundial. Shiller atribui o sentimento de impotência à tecnologia, que elimina carreiras e deixa indivíduos à margem dos avanços. O bitcoin seria, diz ele, a forma que essas pessoas encontram de participar dessa nova economia. “Elas sentem que também estão fazendo parte dessa onda, que estão ganhando algo com isso, não só perdendo. É uma chance de ascenderem ao topo da pirâmide, ao 1%.” Leia, a seguir, a entrevista.

O senhor ganhou o Nobel de Economia por antever os efeitos da crise de 2008. Agora, tem dito que o bitcoin é uma bolha. Qual a razão? O fato de não haver um lastro para essa moeda não é o problema, já que muitas coisas têm valor simplesmente porque as pessoas pensam que elas têm valor. É assim com a cédula de dinheiro no nosso bolso —ela só vale algo porque tem quem a aceite, e assim podemos gastá-la. O problema é que o experimento das criptomoedas pode se tornar uma “pegadinha”, uma vez que sugere que qualquer um pode lançar uma moeda — e ela pode sair do controle, criando uma situação de contágio e formando uma bolha insustentável. Com o bitcoin ainda não é assim, mas pode vir a ser.

O senhor comentou que seus alunos da Yale estão muito entusiasmados com o assunto. Como percebe esse entusiasmo? Sempre que digo a palavra bitcoin, eles acordam durante as aulas. É curioso ver como isso os engaja, estão sempre lendo sobre o assunto, discutindo em fóruns na internet. Todo esse contexto de códigos secretos e senhas é muito atraente. Como o código é o único meio de acesso à criptomoeda adquirida, caso ele seja perdido, tudo se acaba. Essa atmosfera de risco desperta emoção. Por outro lado, esse contágio e esse entusiasmo aumentam o risco de as coisas extrapolarem. É como o fanatismo dos jovens por Star Wars. Você assistiu ao último?

Não vi. Eu só vi o primeiro e achei divertido, embora um pouco tolo. Mas os jovens são fanáticos por isso. É esse mesmo entusiasmo que move o bitcoin e as demais criptomoedas. A diferença é que ser fã de Star Wars não torna ninguém rico. No caso do bitcoin, o dinheiro dá combustível ao entusiasmo. É a fusão do dinheiro com o entusiasmo mais a irracionalidade que faz do bit­coin uma bolha clássica. Bolhas são espalhadas pela dinâmica do boca a boca, e a emoção que move seus atores é a inveja de quem já ganhou dinheiro com o mesmo investimento. Bolhas também despertam sempre muitas dúvidas e o instinto do jogo, do risco. Esse instinto atenua o tédio da vida. Por isso, bolhas prosperam muito entre aqueles que têm uma tendência depressiva, eu diria até suicida. O bitcoin preenche esses requisitos — é como um vício, dá ao indivíduo entusiasmo para acordar no dia seguinte. Nesse sentido, para o bem dessas pessoas, espero realmente que essa bolha não estoure.

Um ano atrás, criptomoeda era assunto de quem estava no mercado de tecnologia. Por que essa expansão tão rápida? A história das criptomoedas começou há bastante tempo. O algoritmo RSA, que é a base da criação do bit­coin, nasceu em meados de 1970. O que é recente é a criação de um aplicativo que transforma essa linguagem tecnológica em criptomoeda. Sua popularização rápida se deve ao fato de as pessoas terem percebido que é possível ganhar dinheiro real com isso. De certa forma, a narrativa por trás das criptomoedas dá às pessoas uma sensação de poder: minerar o próprio dinheiro, negociar, não precisar de bancos. Antes, a impressão que se tinha era que os vencedores dessa nova economia se limitavam ao universo dos techies — aqueles capazes de criar um aplicativo inovador, sendo que, na realidade, a grande maioria das pessoas não tem a menor ideia de como criar um aplicativo. Então, as criptomoedas acabam dando um sentimento de poder a quem antes estava se sentindo impotente.

Por que impotente? No mundo todo, as pessoas começaram a acreditar que a tecnologia da informação fará com que seus empregos desapareçam. E não falo apenas do trabalho, mas também do senso de valor próprio, da autoestima. Quem se dedicou a estudar idiomas, por exemplo, sabe que pode, mais para a frente, correr o risco de ver máquinas fazendo todo o seu trabalho. Quem estudou história sabe que qualquer pessoa pode achar o que quiser sobre o passado em poucos segundos, consultando o Google. Tudo isso cria ansiedade. E o experimento das criptomoedas é muito atraente nesse sentido, porque insere pessoas que estavam à margem da discussão de tecnologia em um mundo novo. Elas sentem que estão também fazendo parte dessa onda, que estão ganhando algo com isso, não só perdendo. É uma chance de elas ascenderem ao topo da pirâmide, ao 1%.

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Na prática, o que pode acontecer daqui para a frente com o bitcoin? Muita gente investe, mas o cenário ainda parece distante daquele de 2008, já que o alcance do negócio é muito menor, limitado àqueles não tão afeitos a grandes instituições. Tenho a impressão de que, por enquanto, a maioria das pessoas está tateando, colocando pouco dinheiro para ver como é. Não vejo movimentações maciças, como ocorreu com a bolha das hipotecas. Em valor, o bitcoin tem ficado estável. Foi criado em 2008 e atingiu seu primeiro pico em 2013. Ficou estável até o começo de 2017, quando começou a oscilar. Ou seja, sua variação pode ser comparada à de uma commodity.

Os governos da China, do Japão e da Coreia têm se movimentado em direção a mais controle nas transações com bitcoin. Uma criptomoeda resiste à regulação? Não creio que resista. O esquema de Ponzi (mecanismos fraudulentos baseados no princípio da “pirâmide”) acabou depois que reguladores entraram em cena. Bitcoin não é Ponzi, mas pode ficar com reputação ruim se começar a ser usado para objetivos ilegais. E isso pode acelerar o processo de regulação. Mas o que realmente me preocupa são essas ofertas iniciais de moeda (initial coin offering, no termo em inglês). Trata-se de uma forma de as empresas captarem recursos no mercado emitindo criptomoedas, não ações ou títulos convencionais. Startups têm feito muito isso nos Estados Unidos. Essas ofertas podem se transformar em artifícios para escapar de leis de segurança, já que as empresas acabam não sendo acompanhadas por autoridades de controle de capitais e podem lavar dinheiro, maquiar resultados e causar uma infinidade de problemas. Se reguladas, essas ofertas também deixam de ser atraentes.

A Bolsa de Chicago, nos Estados Unidos, permitiu a transação de contratos futuros de criptomoedas. Isso é bom? Acho excelente. Vai ajudar a normalizar o mercado, permitindo que se aposte contra esses contratos, como é comum ocorrer com qualquer contrato futuro mundo afora. Ou seja, investidores céticos quanto às criptomoedas poderão investir pesado apostando que o valor desses ativos vai cair. Se isso acontecer, o preço deve ceder a um patamar mais adequado, inferior aos 10 000 dólares que um bitcoin vale hoje em dia. Se elas sobreviverem a esse tipo de aposta, é sinal de que podem ser um ativo viável.

Mas, afinal, bitcoins são moedas ou formas de investimento? As criptomoedas foram criadas para se tornar um meio de transação virtual, mas rapidamente se percebeu que, como há um limite para a geração de cada uma delas, ganhar com sua valorização seria um bom negócio. Há um grupo de investidores que não acreditam em governos, nem em bancos ou instituições consolidadas, e encontraram no bitcoin e seus similares uma saída que imaginam ser segura. Estariam, em tese, protegidos de uma quebra bancária ou um confisco governamental. Compram bitcoins, decoram o código e ninguém poderá roubá-los. Até, é claro, que um ataque hacker aconteça.

O senhor acha que alguma criptomoeda pode substituir o dinheiro no futuro? Não vejo como isso pode acontecer, pois o dinheiro já é um conceito virtual. Criptomoedas são uma boa ideia, e, de certa forma, o interesse das pessoas por elas acarretou o desenvolvimento de tecnologia, como é o caso do blockchain, que é uma extensa camada de criptografia usada para registrar e proteger as transações em bitcoin. O blockchain, não o bit­coin, é a principal inovação.

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O senhor está escrevendo um livro sobre a “economia da narrativa”. O que é isso? Narrativas são histórias que se espalham de forma “contagiosa”, viral. Algumas duram, outras nem tanto. Quando uma pessoa ouve algo e pensa: “Interessante, vou usar essa história em alguma conversa porque quero causar o mesmo impacto que ela teve em mim”, isso é uma narrativa. E o mercado de ações está cheio de narrativas. Um exemplo: no ano passado, o índice Dow Jones atingiu a máxima de 20 000 pontos, um recorde histórico. Quem trabalha na Bolsa de Nova York sabe que o número em si é irrelevante, já que não há nenhum fundamento que justifique dizermos que a bolsa vive seu melhor momento da história. Mas o discurso da Casa Branca era diferente. O presidente Trump havia acabado de assumir o mandato, e, assim, usaram a narrativa de que se tratava de uma reação positiva à sua chegada. Isto é a “economia da narrativa”: valer-se de dados econômicos para criar uma história. É nesse tempo que vivemos hoje.

E por que narrativas afetam a economia? Uma das mais importantes histórias da cultura americana é a do Crash de 1929. Outra foi a da queda da bolsa em 1987. Em uma pesquisa que conduzi por trinta anos, perguntei a investidores qual a probabilidade de situações como essas se repetirem. E, mesmo com o histórico de duas quebras em menos de um século, todos apontavam uma probabilidade muito baixa. Essa situação se manteve até a crise de 2008, dado que a narrativa vigente era a de euforia e prosperidade. A narrativa, nesse sentido, afetou a economia, porque, se o mercado tivesse levado em conta os números completamente irracionais da bolha das hipotecas, e não a história da euforia, talvez a crise pudesse ter sido percebida antes e seus efeitos fossem outros, muito menos nocivos.

O bitcoin faz parte dessa economia da narrativa? Sim, e vou mencioná-lo em meu livro. Afinal, criptomoedas são tão conhecidas, despertam tanta curiosidade e tantas histórias, que se encaixam perfeitamente no tema. Outro fator que faz do bitcoin uma narrativa é o fato de ser a primeira vez na história que uma bolha ganha proporções mundiais. É possível que a regulação a faça estourar cedo ou tarde. Mas é difícil prever quando isso pode acontecer e se isso matará o bitcoin ou não.

Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2018, edição nº 2568

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