Se, na sua espiral obsessiva em busca da perfeição, a personagem bailarina de Natalie Portman em Cisne Negro consumia-se física e mentalmente até tornar-se quase etérea, em Mãe! (Mother!, Estados Unidos, 2017) a presença terrena e sólida de Jennifer Lawrence contrasta com o torvelinho que as obsessões alheias vão instaurando à sua volta: hiperbólico (como sempre), estranho (para dizer o mínimo) e também formidável, goste-se ou não dele, o novo filme do cineasta americano Darren Aronofsky, do já citado Cisne Negro, de O Lutador e de Noé, é feito para tragar o espectador com a coesão indivisível de sua tessitura, e com a combustibilidade crescente de sua narrativa. Mãe!, que já está em cartaz no país, dividiu o público no Festival de Toronto, há alguns dias, e deve continuar a fazê-lo. Talvez seja essa, aliás, a maior de suas qualidades, como de resto em toda a obra de Aronofsky: a intransigência com que ele persegue sua visão e mergulha nela a plateia.
Mãe (Jennifer, numa atuação extraordinária) é a jovem mulher de um poeta mais velho, Ele (Javier Bardem). Mãe constrói diligentemente o lar dos dois: a casa no meio de um prado cercado de árvores, para a qual não há acesso perceptível, a certa altura se perdeu num incêndio, e foi Mãe quem a devolveu à vida, viga por viga. Às vezes, quando encosta o rosto em uma das paredes, ela sente a casa pulsar. Ele, porém, está em bloqueio criativo. Sua impaciência e distância são um desafio para Mãe — e tornam-se um enigma quando um desconhecido, Homem (Ed Harris), bate à porta, e Ele o convida a ficar. Espiando por uma porta, Mãe vê um talho nas costas do intruso. No dia seguinte, quem toca a campainha é Mulher (Michelle Pfeiffer, magistral), a esposa que não se sabia que Homem tinha. Espaçoso e voluntarioso, o casal age como se a casa fosse sua. Ele ignora os protestos tímidos de Mãe contra a invasão: está inebriado com a admiração que os estranhos lhe dedicam. Chegam os dois filhos do casal (os irmãos Domhnall e Brian Gleeson), e uma tragédia acontece. Nessa mesma noite, Ele afinal escreve um poema e engravida Mãe, deflagrando eventos cada vez mais intensos: multidões tentando entrar na casa, festas de um abandono apocalíptico, guerras — e, na culminação do tumulto, um horrível ritual canibalístico no momento em que Mãe dá à luz seu filho.
Alegorias bíblicas e inquirições sobre a natureza da fé ou do sentido religioso são constantes no trabalho de Aronofsky. Mãe!, entretanto, leva-as a um novo extremo. O diretor diz ter escrito o roteiro com urgência, em uns poucos dias nos quais o repente de indignação com a destruição do planeta logo tomou a forma de uma paráfrase do Gênesis — do paraíso que Mãe está moldando para Deus à chegada de Adão e Eva, à tentação do fruto proibido (um cristal que sobrou do incêndio da casa, que Ele guarda com ciúme) e à queda do homem, avançando pelo nascimento de Cristo e pela literalidade com que seu sangue e sua carne são consumidos. A depender da bagagem que o espectador carrega consigo para a sala de cinema, Mãe! pode adquirir muitos outros sentidos ainda — ou talvez nenhum, já que a rejeição é também uma das reações possíveis ao filme. Entre elas, só não se inclui a indiferença.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2017, edição nº 2549