No encontro de dois mundos
A alemã 'Dark' ainda tateia, mas as produções americanas da Netflix, como 'Godless', consolidam as séries como o terreno experimental entre o cinema e a TV
Em 2019, a cidade de Winden está em suspense: há quase duas semanas Erik, de 15 anos, desapareceu nos bosques da região, sem deixar traço. O fracasso em levantar pistas de seu paradeiro pesa sobre a chefe de polícia Charlotte (Karoline Eichhorn) e sobre o detetive Ulrich (Oliver Masucci): 33 anos antes, o irmão menor de Ulrich havia sumido de maneira similar, e nunca mais se soube dele. A situação piora: um grupo de adolescentes sai à noite, de bicicleta, para assuntar o local em que Erik foi visto pela última vez — e o filho caçula de Ulrich some como se houvesse evaporado. Os eventos de 1986 parecem estar se repetindo, e é provável que tenham a ver com a usina nuclear que domina a paisagem de Winden. Crianças, bicicletas, desaparecimentos, uma instalação governamental misteriosa e, logo, um componente sobrenatural: Dark, a primeira série alemã da Netflix (disponível na íntegra a partir desta sexta, dia 1º), tem semelhanças marcantes com Stranger Things, um dos maiores sucessos lançados pelo gigante do streaming.
Tem, também, diferenças importantes, e elas não se restringem à troca do clima de aventura pela atmosfera soturna. Embora a muito bem produzida Dark comece a pegar embalo a partir de seu terceiro episódio, veem-se, na série alemã, certos vícios já erradicados da primeira linha da produção americana e inglesa — como o recurso à apresentação minuciosa (e cansativa) das circunstâncias e personagens que vão compor a trama. Dark — como a também bem produzida 3%, a primeira série brasileira da Netflix, que atingiu certa aura cult nos Estados Unidos — se apoia à vontade na muleta do diálogo explicativo, que tende a soar mais como trecho de apostila do que como conversa. E as duas não demonstram domínio da mais revolucionária diretriz instituída por séries como Família Soprano, The Wire, Breaking Bad e Madmen: o personagem como motor. Godless, uma série americana original da Netflix que entrou na plataforma há poucos dias, não está no patamar dessas obras-primas (poucas estão). Mas compare-se sua artesania com a de Dark ou a de 3%, e percebe-se como é decisiva essa mudança de eixo.
Em Godless, a trama não empurra os personagens: eles existem, no mais pleno sentido dramático do termo, e à trama resta apenas emanar deles. Sendo quem são — a rancheira (Michelle Dockery) que é uma pária na cidadezinha do Oeste por ter tido um filho com um índio, o rapaz (Jack O’Connell) que está em fuga do seu padrasto-carrasco (Jeff Daniels), o xerife (Scoot McNairy) que está perdendo a visão e a autoridade —, eles não poderiam agir senão como agem. E é das suas incontáveis decisões individuais que o enredo vai nascendo e se desdobrando. Mesmo séries atadas à história real, como a inglesa The Crown, sobre Elizabeth II, aderem com firmeza a esse eixo, proporcionando uma sensação preciosa: a de intimidade crescente com os personagens. É uma inversão que exige grande conhecimento dramatúrgico e documental, e é evidente que não faltam séries ruins ou medíocres na produção de língua inglesa. O que surpreende é quantas vão do bom ao superlativo: com quase duas décadas já de experimentação e aprimoramento e mais de 450 séries roteirizadas postas no ar em 2016, o plantel americano de talento é vasto, e é natural que ainda preserve sua vantagem.
Quanto mais a Netflix (leia a entrevista com seu chefe de conteúdo, Ted Sarandos) e outras redes ou plataformas investirem em produções locais, mais rapidamente essa distância vai se abreviar. David Fincher, o cineasta que transformou a Netflix em potência do conteúdo original com House of Cards e que no mês passado lançou na plataforma a excepcional Mindhunter, define as séries como um terreno intermediário entre o cinema e a TV convencional — um espaço em que se pode aplicar o rigor do cinema, no qual cada segundo de cena deve servir a um propósito, combinado à generosidade da TV, na qual se tem sete ou dez horas de cada vez para aprofundar os personagens. Quando se aprende a utilizar essa lógica, o resultado é inevitável: melhores séries, claro. Mas, possivelmente, também uma TV e um cinema melhores.
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2017, edição nº 2559