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Não sou justiceiro

Ministro diz que pacote anticrime não dá a policiais ‘licença para matar’ e que seu desafio é evitar que a Lava-Jato tenha mesmo fim da Operação Mãos Limpas

Por Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h00 - Publicado em 8 fev 2019, 07h00
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  • Depois que assumiu o cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública, o ex-juiz Sergio Moro passou os dias enfurnado em seu gabinete preparando o pacote de medidas contra a corrupção e o crime organizado que será apresentado ao Congresso. Foram dias de solidão e de mergulho na burocracia. Longe da esposa e dos dois filhos, que continuam morando em Curitiba, Moro conversou com assessores, manteve contatos com parlamentares e fez consultas regulares ao presidente da República, tudo com o objetivo de pavimentar o caminho para que seu plano de combate ao crime, redigido de próprio punho, saia do papel. Em entrevista a VEJA na terça-feira 5, o ministro detalhou os principais pontos do pacote anunciado no dia anterior e deixou claro que a sua mudança para Brasília — onde já foi tietado por um entregador de pizza e hostilizado pelo frequentador de um supermercado — representa uma janela de oportunidade. “Não só para impedir retrocessos, mas para contribuir de uma maneira mais incisiva para avanços”, diz ele. A seguir, sua entrevista.

    O pacote anticrime é um sinal de que a Lava-Jato é uma inspiração para o atual governo? Acho que é uma sinalização forte do governo não só anticorrupção, mas também anticrime organizado e anticrime violento. Estamos deixando bastante claro que não se pode lidar com esses problemas separadamente. A corrupção tem impacto na eficiência da máquina pública, privando-a dos recursos necessários para enfrentar a criminalidade organizada e os crimes violentos. Tudo isso está concatenado.

    Uma das propostas diz que policiais poderão não ser punidos se atirarem em legítima defesa por “medo, surpresa ou violenta emoção”. É o ponto mais polêmico? O pessoal está criticando um pouco, mas acho que há certa incompreensão. Pegamos o conceito legal e esclarecemos situações que caracterizam legítima defesa. Por exemplo, um agente policial agir para poupar a vida de um refém. Havia uma reclamação de algumas corporações de que um policial, quando enfrenta um quadro de tensão, em que não tem o total controle da situação, pode eventualmente reagir de modo mais incisivo e acabar respondendo pelo excesso. O presidente da República vocalizou essas reclamações que vinham do âmbito da segurança pública e as considerou legítimas. E elas são legítimas. Os criminosos têm de ser presos, e não mortos, mas há situações passíveis de confronto que têm de ser reguladas pelo direito.

    Alegar “surpresa” para atirar em alguém não é muito vago? São conceitos jurídicos determinados que serão avaliados em casos concretos. O que não se justifica é eventualmente punir um agente policial ou um cidadão que pode ter se excedido em uma situação de legítima defesa, em uma circunstância extrema. As pessoas não são robôs. Não reagem automaticamente aos fatos com toda aquela frieza objetiva. No pacote, não há nenhuma licença para matar. Não basta uma mera afirmação de que foi em legítima defesa. Será analisado e verificado em que circunstâncias o fato ocorreu.

    “Não se justifica punir um agente policial ou um cidadão que pode ter se excedido em situação de legítima defesa. As pessoas não são robôs. No pacote, não há nenhuma licença para matar”

    A obrigatoriedade de prisão após condenação em segunda instância é o ponto mais relevante do pacote?Supremo Tribunal Federal já decidiu por quatro vezes nesse sentido, mas sempre fica a ameaça de uma revisão da jurisprudência. Apresentando um projeto de lei, o governo sinaliza à população que quer ser um agente de liderança na mudança do quadro de impunidade da criminalidade em geral, mas em especial da criminalidade do colarinho-branco. Algo que desacreditou e muito os governos passados, e não é que não tenham feito coisas boas, foi a omissão em liderar um processo de mudança contra a impunidade da grande corrupção. Esse projeto dá credibilidade ao governo. O cidadão não quer que o governo seja um agente passivo nesse quadro de descalabro. Ele quer que o governo tome iniciativa, tome a liderança.

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    O senhor, quando era juiz, determinou que o ex-presidente Lula cumprisse pena na Polícia Federal. A PF, que agora está subordinada ao senhor, posicionou-se contra. Quem está com a razão? O ministro da Justiça não é um supertira, um superjuiz. Ele tem uma responsabilidade mais administrativa, mais estrutural, e não se envolve diretamente nesses casos concretos. A função do ministro é dar estrutura aos órgãos a ele vinculados para que realizem seu trabalho. O caso do ex-presidente faz parte do meu passado. No fundo, quem tem a competência para decidir o local onde o ex-presidente vai cumprir pena é o juiz de execução.

    Há risco de o combate à corrupção feito na Lava-Jato em Curitiba se perder em Brasília? Sempre me perturbou a possibilidade de retrocessos no avanço que se teve contra a impunidade da grande corrupção, por causa de uma alteração legislativa ou de uma ação contrária do Executivo, como aconteceu com a Operação Mãos Limpas, na Itália. Lá, houve um decreto que praticamente mudou a legislação e proibiu prisão preventiva para crimes de corrupção. Vi uma janela para eventualmente estar numa posição elevada aqui em Brasília, na qual eu poderia não só impedir retrocessos, mas contribuir de maneira mais incisiva para avanços.

    O senhor considera essa a sua missão? Talvez seja mais um desafio que uma missão. Há um dado preocupante: desde a Operação Lava-Jato, apesar de todos os esforços contra os corruptos, a percepção do nível de corrupção, medida pela Transparência Internacional, cresceu. Isso indica que, embora os processos judiciais sejam importantes e façam parte da cura do problema, não são suficientes. O trabalho que começou em Curitiba precisa ser complementado em Brasília. Quem é liderança tem de dar o exemplo.

    Por que o senhor considerou satisfatórias as explicações dadas pelo ministro Onyx Lorenzoni, que admitiu ter recebido caixa dois da JBS? O caixa dois é errado. As pessoas que eventualmente cometeram esse ato têm de ser sancionadas segundo a lei que vigora. Se esse é o caso do ministro Onyx ou não, quem vai determinar é o processo. Não dá para eu voltar sempre a essa questão.

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    Incomoda o senhor ser indagado sobre o caixa dois do ministro Lorenzoni ou sobre as suspeitas do Coaf contra o senador Flavio Bolsonaro? O ministro da Justiça não é advogado dos integrantes do governo ou de pessoas que nem sequer entraram no governo. Meu papel é dar estrutura, liberdade e autonomia aos órgãos que atuam dentro do Ministério da Justiça, e entre eles estão o Coaf e a Polícia Federal. Meu papel é diferente, não é ficar advogando, como faziam outros ministros da Justiça do passado. Acho uma conduta inapropriada.

    Há o risco de interferência política nas investigações em curso? O presidente Bolsonaro, quando me convidou, me disse claramente que era contrário à corrupção e pretendia dar aos órgãos de apuração plena autonomia. Isso está sendo seguido à risca. Algo muito meritório no atual governo, e que tem um potencial anticorrupção muito significativo, é o fato de ele não ter loteado politicamente os cargos públicos, não ter cedido à barganha política. Pode eventualmente haver casos de corrupção no governo? Pode. As pessoas são um misto de virtudes e vícios, e não se controla o comportamento de todo mundo, mas com essa conduta o governo já diz “não” a esquemas de corrupção sistemáticos que ocorriam no passado. É um grande diferencial.

    “Flexibilizamos tanto o nosso sistema, com base num discurso equivocado de proteger direitos fundamentais, que esquecemos que esses crimes violam direitos fundamentais”

    O senhor é um vigilante do governo? Não. E nem o justiceiro. Justiceiro é uma palavra que tem um caráter às vezes pejorativo. Tenho as minhas responsabilidades delimitadas. Como juiz da Lava-Jato, eu me expus a situações de risco, porque envolviam processos com pessoas muito poderosas. Não seria agora que iria tolher qualquer liberdade de investigação da Polícia Federal. Pelo contrário, a minha orientação para a Polícia Federal é que ela aja com autonomia. O que eu apenas recomendo é que o foco seja posto na criminalidade mais grave, que são crimes contra a administração pública, crimes de corrupção e criminalidade organizada.

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    O pacote anticrime não corre o risco de superlotar ainda mais os presídios? Temos ciência de que há um problema de superlotação carcerária, mas em relação à criminalidade mais grave — corrupção, crime organizado e crime violento — é preciso endurecer, sim. No Brasil, alguns condenados por homicídio cruel e qualificado ficam menos de dez anos presos. Em países europeus, muitas vezes as pessoas responsáveis por crimes dessa espécie são condenadas à prisão perpétua. Flexibilizamos tanto o nosso sistema, com base num discurso equivocado de proteger direitos fundamentais, que esquecemos que esses atos criminosos violam os direitos fundamentais, e que uma política dura contra esse tipo de crime é uma proteção aos direitos fundamentais de outros. Vivemos numa democracia liberal, mas não pode haver liberdade para as pessoas cometerem crimes e não serem punidas. Isso não é liberdade. Isso é anarquia. Toda a política do ministério é fundada na ideia de fortalecer o império da lei.

    O senhor é a favor da descriminalização das drogas? Essa não é uma política que se encontra dentro dos planos deste governo. Minha avaliação é que uma descriminalização total é inviável, até porque também demandaria um movimento mundial. Não adianta descriminalizar, por exemplo, o tráfico de cocaína aqui no Brasil enquanto a cocaína é proibida no exterior. O que ia acontecer é que o país se transformaria num paraíso para traficantes de cocaína. A descriminalização das drogas talvez gere uma diminuição de gangues, mas gera também problemas sérios de saúde pública. Em todo caso, essa iniciativa não seria consistente com a plataforma de campanha do atual presidente.

    O senhor cogita privatizar presídios? Todas as opções estão na mesa. Não se pode tratar isso como uma bandeira ideológica. É preciso estudar os custos de um e de outro modelo e descobrir em que circunstâncias cada um deles é mais apropriado. Nas penitenciárias federais de segurança máxima, onde estão as lideranças criminosas mais perigosas do país, me parece que o controle do Estado deve ser absoluto. Pode-se pensar em alternativas para presos menos perigosos, desde que o custo seja inferior ao da vaga no sistema público. Não adianta privatizar por privatizar.

    Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621

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