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Não há paz, não há beleza

Soterrado em dívidas e sob interdição judicial, João Gilberto, o gênio maior da bossa nova, agora foge dos credores, da Justiça e dos próprios filhos 

Por Thiago Prado e Sofia Cerqueira
15 dez 2017, 08h12

Só com muita teimosia um grande artista celebrado no mundo inteiro consegue preservar sua intimidade, principalmente nestes tempos de vidas escancaradas pela internet. Teimoso como ele só, João Gilberto livrou-se da exposição tecendo, ao longo de décadas, um casulo inviolável em torno de si: o recluso mestre da bossa nova não dá entrevista, não sai de casa, não vê quase ninguém, é capaz de ficar dias mudo — um exotismo que por vezes abafa sua genialidade musical.

É, portanto, com doloroso constrangimento que se acompanha a roupa suja da família sendo lavada em público. Aos 86 anos, João Gilberto mistura momentos de lucidez com outros de confusão mental, torrou tudo o que tinha e vive à míngua, soterrado em dívidas. No round mais recente, a filha do meio, a cantora Bebel, de 51 anos, conseguiu na Justiça do Rio de Janeiro interditar o pai e obter a tutela provisória de seus contratos e movimentações financeiras. Detalhe: até hoje a notificação da interdição não foi entregue porque João Gilberto não abre a porta.

No dia 27 de novembro, uma segunda-feira, ao lado de um oficial de Justiça e um advogado, Bebel foi ao apartamento do pai, no Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro, para entregar a notificação. “Pai, abre a porta”, gritou. Nada. Ela tocou a campainha, bateu palmas, esmurrou a porta. Nada. O porteiro do prédio aconselhou insistir porque ele estava, sim, em casa. Bebel ligou então para o celular da moçambicana Maria do Céu Harris, uma antiga namorada secreta que está morando com ele. Do lado de fora, ouviu o aparelho soar até entrar na caixa postal. Nada. Uma hora depois, os três foram embora sem falar com João Gilberto. Uma semana antes, já haviam estado lá, igualmente sem sucesso.

Até agora, João Gilberto conseguiu frustrar todas as tentativas de ser encontrado desde que a Justiça o considerou incapaz de tocar a própria vida. No início de novembro, a 5ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio determinou a interdição do artista, transferindo para Bebel sua gestão pessoal, patrimonial e financeira. A tutela tem duração de 120 dias, podendo se tornar definitiva depois que João Gilberto for examinado por um perito — daí a necessidade de notificação. Bebel soube de pessoas próximas ao pai que ele está achando que interdição é o mesmo que internação. A última alternativa será requerer judicialmente o arrombamento do apartamento.

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POSSUO APENAS O QUE DEUS ME DEU - O prédio em que mora, no Leblon
POSSUO APENAS O QUE DEUS ME DEU – O prédio em que mora, no Leblon. (Emiliano Capozoli/)

Os advogados de Bebel justificaram a interdição como uma forma de “pôr fim aos negócios temerários que João vinha sendo orientado a firmar, que resultaram na atual condição de quase miserabilidade do artista”. A VEJA, a filha de João Gilberto não quis comentar sua decisão. “Meu pai sempre foi uma pessoa discreta e não merece ter sua vida exposta”, disse, ainda que a briga já esteja sob os holofotes. São três os argumentos listados para a interdição: 1) ele vive em precárias condições físicas; 2) acumulou dívida vultosa com o passar dos anos e, ao que tudo indica, não tem renda para honrar seus compromissos; e 3) parte de seu patrimônio, os direitos autorais de sua obra monumental, foi parar nas mãos do banco Opportunity, em um negócio que a filha pretende questionar na Justiça.

A ação de despejo movida pelo dono: ele não paga aluguel, condomínio e IPTU há um ano, e a dívida está em 160 000 reais (//)

Bebel, que sempre viveu em Nova York, visitou o pai pela última vez em junho, quando ele ainda lhe abria a porta. Ao entrar no apartamento, chocou-se com o que viu. João Gilberto pesava não mais que 55 quilos, tinha as unhas compridas e o cabelo desgrenhado. Na cozinha, louça suja e alimentos velhos tomavam conta da pia e da mesa. O cheiro de lixo estava em toda parte. Discretamente, ela tirou fotos com o celular. No processo de interdição, há imagens da sala com o sofá manchado e do chão empoeirado, de vasos sanitários imundos nos banheiros, da parede do boxe cheia de infiltrações. Numa visita anterior, ela encontrara situação semelhante. Daquela vez, para distrair o pai, levou-o para uma temporada em um hotel da Zona Sul do Rio. Foi a última vez que postou fotos dos dois na internet — é a imagem que abre esta reportagem. “Pai e filha. Father and daughter. #amo muito”, escreveu no Facebook. Ela imaginava que a fase ruim estava superada. Ver a ruína se repetir a levou à intervenção.

Antes, Bebel consultou os mais íntimos da família, entre eles a produtora Paula Lavigne, amiga de longa data. Juntas passaram a pesquisar a situação financeira de João Gilberto. Encontraram inúmeras pendências, a mais urgente delas na 15ª Vara Cível do Rio. VEJA teve acesso ao processo de despejo do compositor de seu atual apartamento, no Leblon. O responsável pelo espólio da proprietária do imóvel, já falecida, cobra 159 018 reais de aluguéis, condomínios e IPTU atrasados desde julho de 2016. João Gilberto não compareceu à audiência de conciliação, em outubro. Bebel, de qualquer forma, quer tirá-lo de lá e alugou outro imóvel para o pai morar, também no Leblon. É a terceira vez que ele enfrenta ação de despejo por inadimplência. Em setembro, foi condenado em uma delas a pagar 53 878 reais. Não pagou.

QUE COISA LINDA, QUE COISA LOUCA - Cláudia Faissol (à esq.), da alta sociedade carioca, engatou um romance com João Gilberto em 2003, quando ainda era casada, e os dois têm uma filha de 13 anos. A relação foi divulgada por ela, que passou a gerenciar a vida profissional do artista. Muito mais discreta, a moçambicana Maria do Céu Harris (à dir.) entra e sai da vida do músico há cerca de vinte anos e, ao que se sabe, está morando com ele. As duas se detestam e, segundo os vizinhos, batem boca pelos corredores do prédio
QUE COISA LINDA, QUE COISA LOUCA – Cláudia Faissol (à esq.), da alta sociedade carioca, engatou um romance com João Gilberto em 2003, quando ainda era casada, e os dois têm uma filha de 13 anos. A relação foi divulgada por ela, que passou a gerenciar a vida profissional do artista. Muito mais discreta, a moçambicana Maria do Céu Harris (à dir.) entra e sai da vida do músico há cerca de vinte anos e, ao que se sabe, está morando com ele. As duas se detestam e, segundo os vizinhos, batem boca pelos corredores do prédio (Luciana Withaker/Folhapress)

As pendências com imóveis alugados são inexpressivas perto da dívida que tem com shows não realizados. No início de 2011, quando completou 80 anos, João Gilberto anunciou que faria cinco espetáculos comemorativos pelo Brasil. As apresentações foram adiadas e, por fim, canceladas sob a alegação de problemas de saúde. Àquela altura, a Maurício Pessoa Produções, responsável pela turnê, já havia gasto uma fortuna na preparação. Em outubro, decisão em segunda instância do Judiciário fluminense ordenou que o compositor pagasse 1,26 milhão de reais pelo calote. Outro bolo, que por sorte não virou processo, foi dado em 2010 nos organizadores de um show no Carnegie Hall, em Nova York, de onde a bossa nova, em 1962, conquistaria o mundo. Na última hora, João cancelou o espetáculo, que seguiria para Boston e Chicago.

João Gilberto não é o gestor de sua carreira. Há quase quinze anos esse posto é ocupado por Cláudia Faissol, de 45 anos, com quem tem uma filha de 13 anos, Luisa. Os dois se conheceram em 2003, quando Cláudia fazia um documentário sobre João Gilberto e o acompanhou em uma turnê pelo Japão. Na época, era casada com o herdeiro de uma rede de lojas de roupas. Luisa nasceu e só quando ela fez 2 anos o marido de Cláudia veio a saber que a menina não era sua filha. Separaram-se, e João Gilberto assumiu Luisa, que mora com a mãe. Além de Bebel, fruto de seu casamento com a cantora Miúcha, João Gilberto é pai do produtor musical João Marcelo, da união com Astrud Gilberto. Completa a vida afetiva do compositor a companheira de apartamento Maria do Céu. Segundo vizinhos, Maria e Cláudia coexistem como namoradas do artista, se detestam e frequentemente batem boca no apartamento e nos corredores.

Ao tomar as rédeas da vida profissional de João Gilberto, Cláudia estipulou metas ambiciosas, entre elas fazer dele um artista tão popular quanto Roberto Carlos, como declarou em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2009. Além do documentário, que nunca foi concluído, e da turnê dos 80 anos, que também nunca aconteceu, ela prometia lançar uma biografia do companheiro. Apelou a tudo e a todos por patrocínio para os projetos: visitou estatais, procurou ministros, chegou até a enviar uma carta à ex-presidente Dilma Rousseff. Nela, reclamava: “Estamos com grande dificuldade. Contatos foram feitos com o Banco do Brasil, Correios, Eletrobras, Caixa Econômica Federal, Banco do Nordeste e Petrobras. O Banco do Brasil, de antemão e para surpresa e desapontamento de todos (inclusive do próprio artista), declinou o pedido”. Dilma encaminhou a solicitação aos departamentos de comunicação das estatais, mas nenhum dos planos de Cláudia deslanchou. Até porque João Gilberto, sabe-se, é osso duro de roer.

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ENORME INGRATIDÃO – O contrato de João Gilberto com o Opportunity: a família acha que os termos intermediados por Cláudia Faissol são favoráveis demais ao banco e a ela própria (//)

Com o decorrer do tempo, João Gilberto foi ficando cada vez mais ensimesmado. Passa o dia inteiro de pijama, fechado em casa. Pede comida pronta aos restaurantes vizinhos, onde também costuma pendurar a conta. Não suporta ar condicionado, fumaça e, com seu ouvido privilegiado, barulho. O relançamento de seus primeiros discos, obras seminais da MPB, está empacado porque João Gilberto acha defeito em todas as remasterizações, uma fase indispensável do trabalho. O artista tinha 26 anos quando foi contratado pela extinta Odeon, um braço da EMI, e por esse selo lançou três obras-primas em cinco anos. Aí, a relação azedou: João queixava-se de que não recebia direitos autorais; a gravadora dizia que o dinheiro estava lá, mas ele não ia buscar. Em 1988, o desentendimento chegou ao ápice — a EMI lançou, sem autorização, uma coletânea de canções dos primeiros discos, e o compositor, obsessivo em matéria de sonoridade, achou o resultado inaceitável e quis proibir sua venda. Mas levou nove anos para conduzir o caso à Justiça, onde o processo corre até hoje. “Minha impressão é que ele sofre da ‘síndrome do escrivão’, uma cobrança e perfeccionismo tão grandes que, quando vai tocar, sente até dor nas articulações”, diz o geriatra Jorge Jamili, que trata do artista há quinze anos, mas não o vê desde 2016.

No processo que abriu em 1996 contra a EMI, João Gilberto exige pagamento de direitos autorais nunca honrados e indenização por danos morais causados pelo CD reprovado. O caso se arrastava nos tribunais até que Cláudia o convenceu a adotar uma estratégia jurídica comum no exterior, mas ousada para os padrões nacionais: fazer um contrato com o banco Opportunity em que a instituição financeira se encarrega de encaminhar o processo. Assim foi feito, em 2013. O compositor receberia um adiantamento de 10 milhões de reais, em duas parcelas. O Opportunity ficaria com 50% da indenização a ser paga pela EMI, 60% do valor de futuras ações contra a gravadora e mais 60% dos direitos de tudo o que João Gilberto viesse a lançar a partir de então. Com uma equipe de advogados bem preparada, o processo, de fato, avançou. Indenização e direitos atrasados, inicialmente estimados em 2 milhões de reais, saltaram para 179 milhões a partir de um laudo judicial (outro já foi encomendado a pedido da EMI, para o tira-teima). Só daí, pelo contrato, o banco ganharia cerca de 90 milhões de reais, nove vezes o que se comprometeu a adiantar ao artista. Mas as coisas não andaram em ritmo de bim bom bim bim bom bom.

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Os filhos mais velhos de João Gilberto questionam os termos do acordo, que consideram favoráveis demais ao banco. O banco, por sua vez, alega que se lançou em um negócio de risco e que, mesmo que João Gilberto ganhe o processo, todas as partes levarão um bom tempo para pôr a mão na fortuna. Bebel e João Marcelo também condenam, por oportunista, um contrato paralelo que dá à intermediadora Cláudia uma porcentagem sobre os ganhos do Opportunity. Além de discordar da repartição dos ganhos futuros, Bebel está intrigada com o destino da primeira parcela do adiantamento, de 5 milhões. Conforme escritura do contrato com o banco obtida por VEJA, em 2013 João Gilberto recebeu 4,75 milhões de reais em sua conta pessoal no Itaú (250 000 foram para o escritório de advocacia). Como pode ter 1,5 milhão de reais em dívidas (até onde se sabe) quatro anos depois? “O adiantamento foi depositado em conta individual de João Gilberto e foi por ele pessoal e diretamente gerido”, limitou-se a dizer Cláudia a VEJA, por e-mail. Ela afirma ter um vídeo em que João desmente que use o nome dele em seu benefício e qualifica a interdição de “imoralidade”. Ninguém viu essa gravação.

A ciranda de enroscos em que Bebel questiona o Opportunity e desconfia de Cláudia, que tem negócios com o banco, inclui mais um ponto de atrito: aquele em que o Opportunity cobra compromissos do escorregadio João Gilberto. O banco condicionou a liberação da segunda parcela do adiantamento à criação pelo artista de uma empresa para administrar seus direitos, com a anuência dos herdeiros, cláusula que ainda não foi cumprida. Outro acordo, esse informal, entre os dois trata do aguardado relançamento dos primeiros discos. Os originais foram recuperados na EMI, em operação de busca e apreensão. O engenheiro de som André Dias dedicou-­se por nove meses à remasterização das fitas. Para agradar a João Gilberto, adaptou um apartamento para o formato de estúdio. “Queria que ele ouvisse os discos em uma situação ideal. Cheguei a trabalhar dezesseis horas por dia no material”, conta Dias. João Gilberto passou meses escutando as fitas, mas até hoje não deu seu aval. “Todas as pessoas consultadas julgaram perfeito. Mas ele fica querendo achar algum erro”, espanta-se Dias. É triste que, na reta final da vida do gênio brasileiro, como em Chega de Saudade, “não há paz, não há beleza, é só tristeza e melancolia”.

Colaborou Luisa Bustamante

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Publicado em VEJA de 20 de dezembro de 2017, edição nº 2561

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