Em 21 de agosto de 2015, num trem que seguia de Amsterdã para Paris, três rapazes americanos em férias, um empresário inglês e um viajante francês, confrontados com um terrorista do Estado Islâmico que subira na composição levando um fuzil AK-47 e quase 300 balas, reagiram rapidamente e colaboraram para dominar o agressor, impedindo um massacre. Ayoub El-Khazzani já havia alvejado um passageiro no pescoço e estava fazendo mira nos outros ocupantes do vagão quando Spencer Stone, então soldado da Força Aérea, pulou sobre ele e lutou para imobilizá-lo. Stone não cedeu nem quando o terrorista cortou várias vezes sua nuca com uma faca e quase decepou seu dedão. Só largou El-Khazzani depois que seu amigo Alek Skarlatos, sargento da Guarda Nacional do Oregon, conseguiu agarrar o fuzil e o ajudou a deixar o terrorista inconsciente. Stone, treinado em operações de socorro, tratou então de pressionar a artéria do passageiro atingido até que o trem parasse na estação. O que há de mais interessante em 15h17 — Trem para Paris (The 15:17 to Paris, Estados Unidos, 2018), já em cartaz no país, é o fato de que quase todos os personagens dessa cena real (não, claro, El-Khazzani) são interpretados por eles próprios — inclusive o turista que foi ferido e que, graças à ação dos heróis de improviso, sobreviveu. Essa, contudo, é também a fragilidade maior do filme dirigido por Clint Eastwood: no cinema, nem sempre aquilo que é mais real é o que soa mais autêntico. Pelo contrário; com frequência, as atuações constrangidas e o jeito de “reencenação” (canhestra, a recriação da infância dos três garotos faz lembrar aqueles programas de segunda linha do canal History) trabalham contra a persuasão do espectador.
Aos 87 anos de idade e 47 de direção, Eastwood desde o início aderiu a uma vertente própria de naturalismo. Seus atores costumam ganhar uma ou duas tomadas de cada cena apenas, o que intensifica a necessidade deles de se manter dentro da pele do personagem e integrar suas reações instintivas ao âmago do desempenho. O paradoxo é que, quanto mais experiente e treinado o ator, mais êxito ele tem em gerar a naturalidade almejada. Os amigos de infância Spencer Stone, Alek Skarlatos e Anthony Sadler não possuem nenhum treino, e encontram na premissa deste projeto — “seja você mesmo” — um desafio quase intransponível. É sorte que Stone, cujas atitudes foram decisivas e que tem a história pessoal mais rica, seja também o integrante do trio que — aos poucos — sente um grau maior de conforto na tarefa de criar uma versão de si mesmo.
Junto com Skarlatos e Sadler, Stone, um garoto entusiasmado com a ideia de se alistar em algum ramo das Forças Armadas, passou a vida sendo chamado à sala do diretor por desobediência, falta de concentração e má performance escolar, e chegou à juventude frustrado com os vários fracassos de sua carreira militar. Um gigante meigo, sempre sociável e cortês com estranhos e algo desapontado consigo próprio, Stone conseguiu demonstrar a si mesmo quem era durante os 35 minutos de comoção no trem para Paris. Embarcou de volta para os Estados Unidos com uma medalha da Legião de Honra concedida pelo então presidente francês François Hollande e, em casa, ganhou a mais alta comenda militar americana, o Purple Heart. É uma figura apropriada para, com Sniper Americano e Sully, completar a trilogia informal de Eastwood de episódios verídicos sobre o heroísmo espontâneo de pessoas comuns. Ou o seria, se sua história tivesse sido confiada a um ator que lhe fizesse jus: Trem para Paris, ironicamente, o expõe tanto quanto o comemora.
Justiceiro a bordo
Michael McCauley (Liam Neeson), um pai de família com hipoteca e faculdade dos filhos para pagar, recebe uma notícia que, aos 60 anos, é trágica: está demitido da seguradora em que trabalhava, e deve deixar o escritório imediatamente. No bar onde vai se consolar com uma cerveja fora de hora, Michael encontra o ex-parceiro (Patrick Wilson) dos seus tempos de policial, que se comisera dele. E encontra também o recém-promovido capitão (Sam Neill), que o trata de forma suspeitosa.
Talvez nada disso seja coincidência: no trem que o leva de volta ao subúrbio onde vive e ao momento de notificar a esposa da calamidade profissional, o ex-policial é abordado por uma mulher tagarela (Vera Farmiga, ótima), que promete incentivos financeiros se ele fizer uma coisinha de nada — identificar um(a) passageiro(a) que vai pelo nome de Prynne, e então se apossar de sua bolsa. Michael toma o mesmo trem todos os dias; vai facilmente localizar os rostos estranhos à paisagem, diz a moça. Como O Passageiro (The Commuter, Estados Unidos/Inglaterra/França, 2018), já em cartaz no país, é dirigido pelo catalão Jaume Collet-Serra — que vem contribuindo na última década para reinventar o ator de A Lista de Schindler como herói de ação —, está dada a senha para que Liam Neeson mais uma vez apanhe muito, e bata outro tanto, enquanto protege inocentes, desbarata uma conspiração criminosa e tenta, se possível, sobreviver aos seus atos de heroísmo improvisado.
Se em 15h17 — Trem para Paris Clint Eastwood ambiciona o absoluto realismo, Jaume Collet-Serra pretende o seu exato oposto — o máximo de sensação, com doses generosas de absurdos bem urdidos e visual acrobático. Esta é a quarta colaboração entre Collet-Serra e Neeson (segue-se a Desconhecido, Sem Escalas e Noite sem Fim). É também a quarta vez que a dupla usa a mesma fórmula, e obtém com ela o mesmo resultado: uma deliciosa diversão inconsequente.
Publicado em VEJA de 14 de março de 2018, edição nº 2573