Literatura para todos
Fnalistas do Prêmio VEJA-se na categoria Cultura, criaram uma feira literária que forma e revela autores das favelas e periferias do Rio de Janeiro
Localizado na região portuária do Rio de Janeiro, o Cais do Valongo sediou atos sombrios. Estima-se que de 500 000 a 1 milhão de negros desembarcaram no local, entre 1811 e 1831, quando o tráfico transatlântico de escravos foi proibido. Por causa de sua simbologia, o lugar, que em julho de 2017 foi considerado patrimônio cultural pela Unesco, vai passar por uma redenção simbólica. Será palco da Festa Literária das Periferias (Flup), evento cultural criado em 2012 por Ecio Salles e Julio Ludemir — finalistas do Prêmio VEJA-se na categoria Cultura — e dedicado a formar talentos da escrita das favelas e bairros pobres fluminenses. A sétima edição da feira, neste ano, em novembro, terá a presença de autores negros e vai homenagear Martinho da Vila, cantor, compositor e poeta, e Maria Firmina dos Reis (1822-1917), a primeira escritora negra brasileira.
As raízes da Flup estão fincadas na prefeitura de Nova Iguaçu, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Oito anos atrás, Salles era secretário da Cultura e Ludemir, seu adjunto. A dupla já tinha tomado iniciativas como o Jovem Repórter, cujo objetivo era produzir notícias positivas sobre a Baixada Fluminense. A boa qualidade do material apresentado fez com que Salles pensasse em um projeto relacionado à literatura. Ludemir, que era um frequentador de feiras literárias (em especial a Flip, que acontece anualmente em Paraty), sugeriu fazer algo do gênero, mas com foco na periferia. Nascia então a Flup. Nesses seis anos, foram publicados catorze livros, e das oficinas literárias da feira saíram 156 escritores. Geovani Martins, autor da elogiada coletânea de contos O Sol na Cabeça (lançada neste ano pela Companhia das Letras), foi um deles. “Ele mudou o GPS da literatura brasileira”, diz Ludemir, de 58 anos. Outros talentos germinados foram os poetas Mery Onírica e Rodrigo Santos e o escritor Enrique Coimbra – ou Enrique sem H, como prefere ser chamado.
A Flup é um evento itinerante. Em seis anos, ela passou por Morro dos Prazeres, Vigário Geral, Mangueira, Babilônia, Cidade de Deus e Vidigal. O escritor e cronista carioca Lima Barreto (1881-1922) foi o primeiro homenageado. Waly Salomão, Abdias do Nascimento, Nise da Silveira, Caio Fernando Abreu e Oduvaldo Vianna Filho são outros autores que receberam destaque no evento. Nenhum deles foi pautado pela obviedade. “Não queremos ir atrás do Paulo Coelho, mas sim entender qual repertório a atual geração poderia desejar”, justifica Ludemir.
Salles e Ludemir procuram entender qual repertório literário a geração atual mais deseja
Outro aspecto importante é que o evento não se resume a uma semana de atividades. Ocorrem vários encontros ao longo do ano, cada qual em uma comunidade do Rio, que culminarão no evento no Cais do Valongo. O primeiro é a Flup Parque, dedicada ao público infantojuvenil, que acontece nas escolas no entorno de onde será realizada a feira literária. Em seguida, a Flup Pensa, uma série de encontros com autores — no fim, é publicado um livro com os melhores textos do evento. Existe a preocupação de distanciar as comunidades do estereótipo do iletrado fã de funk — ainda que a dupla não tenha nenhum preconceito contra o gênero, visto que Ludemir é autor do livro 101 Funks para Se Ouvir Antes de Morrer. Em todos os eventos e debates é oferecido um lanche aos participantes inscritos. “O sujeito passa duas horas no transporte até chegar ao nosso encontro. Ele vem com fome”, diz Ludemir.
O estímulo que Salles e Ludemir dão a autores estreantes é um dos maiores méritos da Flup. Os aspirantes a escritor conversam com autores consagrados e escrevem com base no estímulo desses bate-papos. Seus textos depois são analisados por uma banca, na qual se inclui gente de renome, como os poetas Bernardo Vilhena e Alexandre Faria. “A ideia é mostrar a esses novos talentos onde estão as suas fragilidades”, diz Salles, de 47 anos. Depois, é publicado um ranking com os melhores textos.
A festa gerou muitos momentos curiosos nesses seis anos de vida. Em 2016, a dramaturga escocesa Jo Clifford bandeou-se para a Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, para protagonizar O Gospel Segundo Jesus, em que interpretava um Jesus trans, com suporte de um coral de mendigos. Salles e Ludemir tiveram de negociar a exibição do espetáculo com as autoridades religiosas da comunidade (no caso, os pastores evangélicos). “O pastor me perguntou se Jesus aparecia em alguma atividade homossexual. Eu disse que não, e a peça foi liberada”, conta Ludemir. No primeiro ano da Flup, eles precisaram obter uma autorização especial da prefeitura do Rio de Janeiro para que vários ônibus subissem um morro transportando os integrantes do Coral 1 000 Vozes, importante grupo vocal do estado.
A dupla está sempre atenta a oportunidades que enriqueçam a programação do evento. Numa conversa informal, Salles soube que o escritor paraibano Ariano Suassuna (1927-2014) iria à cidade para participar de uma homenagem e tratou de convencer sua editora a estender a permanência do mestre para que ele desse uma palestra aos convidados de uma das edições da festa. A Flup de 2018 está orçada em 1 milhão de reais e conta com patrocinadores como Petrobras e Itaú. Nem todas as participações foram confirmadas, mas Salles adianta que trará a “elite da literatura negra”. Sabe-se de antemão que entre alguns convidados estará o rapper Emicida. Muitas dessas ideias acabam sendo aproveitadas por outras feiras — caso de Lima Barreto, que, cinco anos depois de ser homenageado na Flup, se tornou o tema da Flip, em Paraty. O flamenguista Julio Ludemir e o vascaíno Ecio Salles são como Zico e Roberto Dinamite jogando no mesmo time — em prol da literatura.
Publicado em VEJA de 11 de julho de 2018, edição nº 2590