Renato Teixeira, de 72 anos, e Almir Sater, de 61, definem-se como compositores “de raiz”. A expressão costuma ser usada para exaltar nostalgicamente a superioridade da velha guarda da viola em relação aos astros do neossertanejo de balada. Mas a dupla não atribui nenhuma conotação purista ao termo “raiz” — trata-se, antes, de uma comparação direta com a vida das árvores. Sater diz que a grande canção parece uma imponente figueira: suas raízes, de tão entranhadas na terra, não permitirão jamais que a árvore seja derrubada pelos ventos do modismo. E é certo que, com a parceria iniciada em 1986, Sater e Teixeira colaboraram para a sobrevivência de uma desmatada flora do cancioneiro nacional. São deles clássicos como Tocando em Frente e Um Violeiro Toca, sucessos na voz dos autores e de muitos bons intérpretes (a primeira foi gravada por Maria Bethânia). A combinação da destreza de Sater na viola com o lirismo de Teixeira continua a render bons frutos. A dupla lançou há dois anos o disco AR (título que une as letras iniciais de Almir e Renato) e depois juntou-se a Sérgio Reis na turnê Tocando em Frente, que atravessou 2016 e 2017. Na próxima semana chega às lojas um segundo disco, +AR, com dez novas composições — muitas delas com potencial para se tornarem figueiras.
“A boa música faz o pelo arrepiar, as lágrimas brotarem de seus olhos” , diz Teixeira, que vem produzindo arrepios e lágrimas há décadas. Sua grande contribuição foi ter colocado a sonoridade caipira no cancioneiro brasileiro pós-bossa nova — no mesmo período em que Fagner, Belchior e Alceu Valença deram um toque nordestino à MPB. Nascido em Santos, mas radicado em Taubaté, no interior de São Paulo, na adolescência Teixeira redescobriu a música caipira por vias inusitadas. Já havia feito canções mais, digamos, urbanas para Roberto Carlos e Gal Costa, quando, nos anos 70, começou a ouvir Paulinho da Viola, cujo samba versava sobre a realidade imediata do seu Rio de Janeiro natal. “Cheguei à conclusão de que tinha de falar mais sobre o campo, que eu conhecia tão bem”, diz Teixeira. Dessa intuição surge Romaria, de 1977, sucesso na voz de Elis Regina. Em suas letras, Teixeira atinge a emoção mais densa pelo coloquialismo, como atestam o singelo “pirapora” que dá ritmo ao refrão de Romaria e a desilusão amorosa expressa em “sinto o coração flechado / cercado de solidão / penso que deve ser doce / a fruta do coração”, de Amora. “As composições de Renato Teixeira tratam de temas profundos, mas de uma maneira mais leve”, teoriza o compositor e escritor Ivan Vilela, estudioso da música caipira. Teixeira revisitou muitos de seus grandes sucessos (Romaria ficou de fora), acompanhado pela Orquestra do Estado de Mato Grosso, em Terra de Sonhos, disco lançado em 2017.
O sul-mato-grossense Almir Sater não precisou redescobrir o som caipira, mas, ao contrário, tingiu a viola com sonoridades pop. “Eu curtia música caipira mais por causa dos instrumentistas, mas a minha fonte sempre foi o rock’n’roll e o violão tocado com cordas de aço”, diz. Foi com essa levada de caipira moderno que se estabeleceu, nos anos 70, em São Paulo, onde acompanhou as cantoras Tetê Espíndola e Diana Pequeno. Almir Sater não se vê como um virtuose, mas seu parceiro admira demais o modo como ele toca a viola. “Ele é um xamã. Tem uma coisa que lembra o Tom Jobim: uma dedada na nota e acabou, fica perfeito”, elogia Teixeira.
Renato Teixeira e Almir Sater são de uma era em que a canção de sucesso era fruto do trabalho artesanal, e não da linha industrial com que compositores hoje criam hits para duplas sertanejas. Ainda perseguem aquela inefável entidade que assombra criadores de todas as artes — a inspiração. Que às vezes é repentina: Tocando em Frente, o maior sucesso da dupla, foi composta em questão de minutos, enquanto estavam para almoçar, na Semana Santa de 1990, na Serra da Cantareira — onde são vizinhos. “A melodia saiu tão fácil que eu pensei que fosse plágio”, confessa Sater. Renato Teixeira buscou, na letra, aqueles dizeres edificantes e confortadores que as pessoas costumam pendurar em quadros e placas pela casa. “Só que na hora não me lembrava dessas frases e comecei a criar novos versos”, diz. Naturalmente, “É preciso amor pra poder pulsar / É preciso paz para poder sorrir / É preciso chuva para florir” estão a anos-luz de clichês como “Não há lugar como nosso lar”.
O sopro de criatividade também pode demorar anos. A dupla levou uma década para terminar Brasil Poeira, que em 1996 fez parte da trilha sonora da novela O Rei do Gado, da TV Globo (há quem gaste ainda mais tempo: no ano passado, Stevie Wonder revelou uma nova composição na qual, diz ele, vinha trabalhando desde 1971). Sater gosta de dizer que as canções nascem quando o compositor está precisando de dinheiro, apaixonado ou motivado pelo trabalho. Como ele não parece ter problemas financeiros nem dá detalhes da vida pessoal, é de concluir que o trabalho com Renato Teixeira é uma grande motivação. O novo disco, +AR, é uma lufada de inspiração que ficou guardada por dois anos. Foi gravado quase no mesmo período do primeiro AR, mas o lançamento foi se atrasando, principalmente por causa da turnê com Sérgio Reis. É um álbum enxuto: dez canções em pouco mais de meia hora, o suficiente para os dois amigos passearem pela música caipira e pelo folk, com um desvio pela sonoridade andina, em Tudo Vem Quando a Gente Chama. Mascate, que fala dos vendedores ambulantes, e Festa na Floresta, sobre um arrasta-pé da bicharada, têm certa qualidade cinematográfica. Uma boa canção, diz Almir Sater, precisa ter melodia bonita e letra que arrebate, e essas características básicas abundam em +AR. Renato Teixeira compõe imagens como “sandália de nuvens” para definir um objeto do desejo em Flor do Vidigal, fala de um sertão “onde mora a ventania e onde o trovão cria suas melodias” em Eu e Você e um Violão e combina a crônica da vida na estrada a uma reflexão sobre a brevidade da existência em Assim os Dias Passarão. A figueira tem raízes fundas, mas lança seus galhos para o ar.
Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2018, edição nº 2571