Hora do acordão
Senado revoga a suspensão de Aécio Neves, deputados absolvem Michel Temer e o Supremo se prepara para facilitar a vida dos condenados em segunda instância
Foi um protesto silencioso, anônimo e certeiro. Na segunda-feira 16, uma placa em frente ao prédio do Congresso Nacional amanheceu coberta por um adesivo em que se lia: “Formação de quadrilha — Corrupção ativa — O grande acordo nacional”. Era uma referência a dois dos crimes apurados pela Lava-Jato e, claro, à estratégia desenhada pelos poderosos investigados para barrar a operação. O adesivo, tão logo descoberto, foi removido. Já o acordão da vergonha que ele denunciava avançou mais uma casa, sem dificuldade alguma, nos dias seguintes. Na terça-feira 17, o plenário do Senado derrubou a decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) que afastara o senador tucano Aécio Neves de seu mandato. Um dia depois, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara decidiu que o melhor destino para a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente Michel Temer era a gaveta, o arquivo morto. A balança, que vinha pendendo para o rigor contra os suspeitos de corrupção, agora está vergando para o lado de sempre: o da impunidade. E a tendência é que esse processo se acentue ainda mais, depois que o STF presidido por Cármen Lúcia preferiu omitir-se do combate ao lavar as mãos no caso Aécio.
Gravado numa conversa indecorosa com Joesley Batista, na qual achacava o empresário em 2 milhões de reais e recomendava em tom jocoso que a quantia fosse entregue a alguém que pudesse ser morto antes de fazer delação, Aécio Neves recuperou o mandato não pela força de seus argumentos contra as acusações de corrupção e obstrução de Justiça, mas sim graças ao espírito de corpo e ao zelo dos senadores pela própria cabeça. Numa sessão banhada de constrangimento, em que nem o PSDB fez questão de defendê-lo com entusiasmo, o Senado mostrou que o importante era uma blindagem geral. O raciocínio é o seguinte: se hoje o Supremo afasta Aécio, amanhã afastará qualquer um de nós.
Por 44 votos a 26, apenas três a mais que o mínimo necessário, o plenário devolveu a Aécio o status de senador. “Mesmo a banda que não é muito favorável compreendeu a circunstância de que era o Senado que estava em causa”, diz Renan Calheiros (PMDB-AL), que responde a dezesseis inquéritos e foi alvo de um pedido de prisão por parte da Procuradoria, negado pelo Supremo. Dos 44 senadores que votaram a favor do tucano, dezenove estão sob investigação da Lava-Jato. Caso de Fernando Collor (leia a reportagem na pág. 50) e de Romero Jucá, o líder do governo que foi gravado no ano passado dizendo que era preciso “estancar essa sangria” da Lava-Jato.
Recuperando-se de uma cirurgia de diverticulite, Jucá participou da sessão apesar de ter tido “arrancada metade das tripas”, conforme definiu Renan. Tal empenho é de fácil compreensão. Jucá responde a treze inquéritos no Supremo e também já foi alvo de um pedido de prisão. Além de atuar em causa própria, ele defendeu os interesses do Palácio do Planalto. Afinal, o presidente Michel Temer se apoia em Aécio, seu principal aliado dentro do PSDB. É Aécio quem impede a saída do partido da base governista. São políticos siameses, hoje. A sobrevivência de Aécio é um fator importante para a sobrevivência de Temer. Daí por que, dos 22 senadores peemedebistas, dezoito decidiram devolver o mandato a Aécio. O tucano reapareceu para trabalhar já no dia seguinte à votação e fez um discurso de apenas dois minutos. Afirmou ser vítima de uma armação, mas, mesmo assim, ponderou que voltava à Casa “sem ódio nem rancor”. Teve uma recepção fria e ainda enfrentou o constrangimento de ouvir o presidente interino do PSDB, Tasso Jereissati, pedir que deixe em definitivo o comando do partido, posto do qual está licenciado.
Tasso não prega sozinho. Paulo Bauer, do PSDB de Santa Catarina, teve uma crise de hipertensão horas antes da votação sobre o mandato de Aécio. Motivo: como líder da bancada, ele deveria se manifestar a favor do colega, mas, de olho nas urnas, não escondia a preocupação com o desgaste que tal postura provocaria diante do seu eleitorado.
A votação da denúncia contra Temer na CCJ da Câmara também foi sintomática do acordão da impunidade. Três deputados do partido ligados a Aécio, todos de Minas Gerais, votaram pelo arquivamento da representação contra o presidente, acusado de obstrução de Justiça e participação em organização criminosa. Outros cinco deputados da legenda, no entanto, manifestaram-se pelo prosseguimento da denúncia. Apesar dessas deserções, Temer venceu com folga na CCJ: 39 a 26. Quando da análise da primeira denúncia, o placar foi de 41 a 24. O caso segue para o plenário, onde deve ser votado na quarta-feira 25. São favas contadas que Temer, mais uma vez, sairá vencedor — e, entre os vários motivos que o sustentam no 3º andar do Planalto, está o próprio acordão, que atrai o interesse de gente de todas as siglas.
Os parlamentares estão fechados com Temer porque o peemedebista reproduz o discurso de que existe uma ofensiva para criminalizar a classe política e, de quebra, move mundos e principalmente fundos para cultivar a lealdade das excelências. Mesmo com a grave crise fiscal, Temer abriu a torneira das emendas parlamentares. Ignorando as sucessivas denúncias de uso de cargos públicos para a cobrança de propina, Temer vem loteando a máquina administrativa entre os políticos. No site de VEJA, o professor e pesquisador da FGV-Rio Sérgio Praça registrou que 668 cargos de alto escalão eram controlados por partidos políticos em junho. No mês seguinte, já eram 731. Nesse ritmo, até o fim do ano o total passará de 1 000.
As negociatas típicas do varejo fisiológico são acompanhadas de tenebrosas transações no atacado, nas quais prevalecem os lobbies de bancadas poderosas. Recentemente, grandes devedores de impostos foram contemplados com um novo Refis, com direito a descontos generosos em multas e juros. Na semana passada, ruralistas conseguiram mudanças nas regras de combate ao trabalho escravo. Para os interesses imediatos do Planalto, a medida influi diretamente nas convicções de mais de 200 parlamentares.
É tamanho o grau de degradação que, na quarta-feira, se ouviu a seguinte frase, em alto e bom som, no gabinete da presidência da Câmara: “Está todo mundo passando a mão no Temer”. Para piorar, a degradação tende a ganhar velocidade. Nesta semana, a Câmara deve retomar as discussões sobre o projeto de abuso de autoridade, que desde o início é usado por lava-jatistas para intimidar juízes e procuradores. O texto é depositário da esperança da “sobrevivência da espécie” no Congresso, conforme confessou o deputado João Carlos Bacelar (PR-BA) em conversa gravada por Joesley Batista. Outra medida no forno é a mudança na lei da delação premiada, a fim de impedir que pessoas presas possam firmar acordos.
Na cruzada contra as punições, os políticos também contam com mais uma ajuda providencial do Supremo, que até hoje não proferiu uma única condenação sequer contra detentores de foro privilegiado no âmbito da Lava-Jato. Nas coxias do STF, arma-se a revisão da decisão que autorizou a prisão com condenação em segunda instância. Ao colocar a cadeia no horizonte de curto prazo de corruptos e corruptores, essa decisão do STF provocou uma corrida por acordos de delação e ajudou a expor as entranhas do petrolão. Revogá-la tende a silenciar novas denúncias — inclusive a do ex-ministro Geddel Vieira Lima, aquele do apartamento com 51 milhões em dinheiro vivo.
Como a palavra de ordem é “estancar essa sangria”, há pressão crescente para que o STF adote regra menos rigorosa, permitindo a prisão apenas depois de decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), espécie de terceira instância. As chances de que isso venha a acontecer são reais. Quando o plenário da corte estabeleceu como nota de corte a segunda instância, o resultado foi de 6 votos a 5. Desde então, houve uma mudança na composição do STF: a entrada de Alexandre de Moraes no lugar de Teori Zavascki, morto em janeiro. Na semana passada, foi justamente Moraes quem defendeu que a questão seja discutida novamente neste ano. Uma mudança esperada é de Gilmar Mendes. O ministro era favorável à prisão com condenação em segunda instância quando o PT estava no olho do furacão. Agora, com tucanos no centro das investigações, Mendes não pensa mais assim. Se o caso for retomado e prevalecer a proposta que prega a prisão só depois de julgamento no STJ, os condenados vão ganhar tempo e se beneficiar da notória abulia dos tribunais de Brasília para prender políticos.
O tempo médio de tramitação de um processo criminal no STJ é de onze meses, mas a média, obviamente, não vale para aqueles que têm condições de contratar as melhores bancas de advocacia do país. O ex-senador Luís Estevão conseguiu adiar por quase dez anos o cumprimento da pena a que foi condenado. Sua defesa apresentou nada menos que 36 recursos ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, ao STJ e ao STF desde que foi condenado em segunda instância. Ele só acabou preso em 2016, depois que o Supremo entendeu que era possível a prisão com decisão de segundo grau. Para Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, se o Supremo recuar nessa questão, lançará uma flecha no coração da Lava-Jato. “Onde há impunidade, a corrupção encontra espaço para se alastrar. Com isso, a Justiça Penal se torna uma piada para os poderosos. O poder econômico e político passa a ser capaz de comprar a injustiça que lhe favorece. Passa-se a mensagem oposta à da Lava-Jato, que é a de que todos estão debaixo da lei, independentemente de cor, de bolso e de cargo.”
O inferno astral do PSDB
Ao declarar que Aécio Neves “não tem condições, dentro das circunstâncias em que está, de ficar como presidente do partido”, o presidente interino do PSDB, Tasso Jereissati, tinha dois objetivos. O primeiro era dar uma satisfação a apoiadores da sigla inconformados com o resultado da votação que garantiu a volta de Aécio ao Senado. O segundo, explícito, era forçar a mão para que o colega abandonasse rapidamente o posto. A manifestação pública de Tasso pegou desprevenido o senador mineiro, desacostumado ao fogo amigo à queima-roupa. Em resposta, Aécio disse que não discutiria questões partidárias pela imprensa.
As brigas televisionadas entre caciques são novelas mais corriqueiras no PMDB de Renan Calheiros do que entre tucanos, pouco afeitos a expor as vísceras na presença das câmeras. Mas o PSDB pós-Lava-Jato é cada vez mais outro partido. E mudou para pior. Hoje, a sigla tem dois ministros, seis senadores, três governadores e quatro deputados federais investigados por corrupção. Aécio, até há pouco tempo o nome mais reluzente do partido, dono de um capital político de 51 milhões de votos conquistados nas eleições presidenciais de 2014, acaba de sair de um período de 21 dias de afastamento do mandato, o segundo determinado pela Justiça neste ano. O primeiro durou 43 dias e foi ordenado logo depois da divulgação do áudio em que o senador achaca o bilionário Joesley Batista em 2 milhões de reais, a ser recolhidos por alguém “que a gente possa matar antes de fazer delação”, segundo se ouve na gravação do encontro entre o senador e o empresário.
A presidência do PSDB, desde então interinamente nas mãos de Tasso Jereissati, agora é alvo da cobiça da ala de tucanos mais próxima de Michel Temer, hoje capitaneada por Aécio e ministros do PSDB. Essa ala quer que a liderança partidária seja assumida pelo governador Marconi Perillo, de Goiás, ele próprio investigado na Lava-Jato. Tasso deseja continuar no posto e, para isso, tem o apoio da maioria dos senadores e da ala jovem do partido, os chamados “cabeças-pretas”.
Um grupo de tucanos históricos ameaça abandonar a sigla caso o cearense perca o posto. Trata-se de expoentes do PSDB que ocuparam cargos durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, como Elena Landau e Edmar Bacha. Elena, que vem desferindo críticas ao partido desde os primeiros respingos da Lava-Jato, afirma que, além da permanência de Tasso na presidência, a saída de Aécio é fundamental. “Este partido precisa ter a coerência que cobrou de outros. Há uma ala que ainda acha que dá para viver no estilo PMDB”, diz. Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central de FHC e agora ex-tucano, já bateu asas rumo ao Partido Novo.
Um diálogo recente travado entre Tasso e Aécio ilustra a posição que os dois assumiram no partido. Em agosto, Tasso patrocinou a veiculação de um programa do PSDB que dizia que a sigla havia se dobrado ao “presidencialismo de cooptação”. O cearense foi então violentamente criticado pela turma de Aécio, que pedia a saída do interino da liderança partidária. No dia 22 daquele mês, os dois caciques, já rompidos, se encontraram em um almoço. Tasso perguntou a Aécio se não tinha nada a lhe dizer. O mineiro respondeu que não, mesmo porque eles agora estavam em “lados opostos”. Tasso disse não ter entendido a afirmação, ao que Aécio retrucou, com ironia: “Você está do lado do bem e eu, do mal”. A resposta do cearense foi pouco conciliadora: “Pois é, Aécio, cada um escolhe o lado em que quer estar”. A decisão sobre com que ala ficará a presidência do PSDB será tomada em dezembro.
Para cientistas políticos, o ovo da serpente surgiu no ninho tucano a partir da aliança com o PMDB de Michel Temer na coalizão que se formou pós-governo Dilma Rousseff. “Essa crise interna é fruto de uma contradição fundamental. Existem quatro ministros do PSDB, e essas pessoas não querem sair do governo, já que estar lá significa ter acesso a recursos e sair significa perder espaço de poder”, avalia o cientista político Carlos Pereira, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) no Rio e professor visitante da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. “No entanto, quanto mais o partido fica no governo, mais difícil fica sua saída e mais complicado se torna o discurso do candidato tucano em 2018.”
A indefinição do nome do PSDB que vai concorrer à Presidência é outro elemento a desestabilizar o ninho tucano. O prefeito de São Paulo, João Doria, que buscava cacifar-se como candidato “novo” com o apoio do grupo de Aécio e dos ministros tucanos de Temer, se desidratou, caiu nas pesquisas e, agora, está menos cotado na preferência dos tucanos do que seu padrinho Geraldo Alckmin, que, por sua vez, coleciona o desgaste de treze anos de gestão tucana no governo de São Paulo e menções na planilha da Odebrecht.
O PSDB, que se consolidou como oposição desde 2002 com a vitória do PT, hoje ocupa o lugar que sempre foi do PMDB: o de partido majoritário que dá sustentação ao governo no Legislativo. Tal posição dificulta ainda mais a definição de um candidato forte para 2018, dado que só apresenta desvantagens. Como o PSDB é o principal partido da base, a opção de abandonar o governo e concentrar-se nas eleições terá um custo político alto — os ministros tucanos não apoiam o desembarque e contrariá-los só aumenta o desgaste interno. Em segundo lugar, caso a economia se recupere ao longo da corrida eleitoral, os louros da conquista ficarão para o governo, e não para o PSDB. Essa hipótese dá vantagem ao PMDB tanto num cenário de lançamento de candidatura própria quanto diante da possibilidade de o partido apoiar qualquer outra sigla em 2018. “O PSDB virou um vassalo do PMDB. Está encalacrado e imerso numa crise de identidade. A falta de posição no passado, quando poderia desembarcar, passou a ter um peso elevadíssimo agora”, diz o jurista Miguel Reale Júnior.
A votação no Senado que manteve o mandato de Aécio Neves mostrou mais do que a dependência flagrante do PSDB em relação ao governo Temer e seu partido. Provou que a sigla teme a Lava-Jato tanto quanto o PT e o PMDB e tem uma liderança rachada e com poucas perspectivas de conciliação. A um ano do pleito presidencial, o cenário não poderia ser pior.
Ana Clara Costa e Sofia Fernandes
Só 24% acreditam na Justiça
A confiança dos brasileiros nas instituições despencou em todas as esferas de poder neste ano, aponta um levantamento inédito da Fundação Getulio Vargas (FGV). O Judiciário, o principal objeto da pesquisa, atingiu o nível mais baixo da série iniciada em 2009: só 24% das pessoas entrevistadas disseram acreditar na Justiça. Mesmo assim, dos poderes analisados, ainda é o que se sai melhor. O Congresso Nacional, por exemplo, mereceu a confiança de apenas 7% dos entrevistados e o governo federal, de 6%. Antes, esse mesmo levantamento, chamado de Índice de Confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil), já mostrava números alarmantes — em nenhum caso, porém, eles desciam a um dígito. Em 2014, ano em que a Lava-Jato começou a prosperar, 29% dos entrevistados diziam confiar no Judiciário, 29% no governo e 19% no Congresso. Agora, tudo piorou. A consciência das dimensões que a corrupção assumiu no país foi determinante para o resultado do levantamento deste ano, diz a professora da FGV e coordenadora da pesquisa, Luciana Ramos. “A queda generalizada na confiança reflete as revelações recentes. Como consequência delas, o sentimento geral é que nem Congresso, nem Presidência, nem Judiciário estão preocupados com os cidadãos. O Congresso luta para se proteger e mostra que não há a vontade de criar regras e tomar decisões em prol da sociedade”, afirma. No caso do Judiciário, nem o juiz Sergio Moro, detentor de altos índices de aprovação em pesquisas de opinião, serviu para equalizar o descontentamento. “O efeito Moro não foi significativo porque, embora ele tenha um simbolismo pontual, a população pensa no Judiciário como um todo — não enxerga um ator de forma isolada”, diz Luciana.
Sofia Fernandes
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2017, edição nº 2553