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“Eu me sinto mais jovem”

O paulista Carlos Augusto Manço, de 90 anos, acaba de entrar para a faculdade de arquitetura

Por Carlos Augusto Manço
Atualizado em 30 mar 2018, 06h00 - Publicado em 30 mar 2018, 06h00

Tem a “Di menó”, uma menina de 17 anos, a Codorninha, o Sedução, e eu sou o Juventude. Os veteranos me deram a plaquinha de papelão com esse apelido no primeiro dia de aula do curso de arquitetura no Centro Universitário Barão de Mauá, aqui em Ribeirão Preto. É o trote dos calouros, então temos de pendurar a folha no pescoço em todas as aulas. Muitos já pararam de usar, mas vou esperar até que me mandem tirar a minha. Sou desenhista por formação técnica. A vida inteira trabalhei como um profissional da área de construção, mas não tinha o diploma universitário. Agora, aos 90 anos, decidi prestar vestibular para buscar o título. A prova não foi difícil. Adoro ver artigos acadêmicos e, dias antes do exame, li um sobre consumismo — justamente o tema que caiu na redação. Dei sorte.

Eu me iniciei na atividade de desenhista aos 22 anos. Passei 35 anos trabalhando na Universidade de São Paulo. Uma das tarefas que recebi na USP foi transformar a maternidade mantida pela indústria de açúcar Sinhá Junqueira no Hospital das Clínicas. Uma adaptação gigantesca. Tivemos de desmanchar um canto, construir outro, ampliar, converter salas em consultórios, centro cirúrgico, laboratórios de esterilização. Eu desenhava e, claro, o engenheiro revisava e assinava o projeto final. Era uma dificuldade imensa, porque eu só sabia desenhar casas, mas precisei enfrentar uma porção de outras situações.

Comecei a pensar em frequentar a universidade muitos anos atrás, mas acabei protelando, porque surgiram outros compromissos financeiros, como a faculdade da minha esposa, Nice, que morreu faz dez meses. Nós tivemos quatro filhos. Primeiro, a Lúcia e o Carlito. Tempos depois, o cacique de uma tribo xavante da Serra do Roncador, em Mato Grosso, que era amigo de um amigo, me procurou. Ele trouxe um menino aqui na porta para eu e a Nice criarmos, ensinarmos a ler, a fazer conta. A ideia era que, depois que ele aprendesse tudo, voltasse para a aldeia, a fim de ajudar no cultivo de arroz. Seu nome era Wauenru Otomopá, mas adotou o nome de Roberto. Mais tarde veio também o Paulo, que virou cacique. Os dois foram embora para a tribo ao completar 14 anos, para se casar. Cada um tem duas mulheres hoje. Eles dizem que os filhos deles são meus netos. Somando, deve dar umas vinte crianças. E ainda tenho oito netos e quatro bisnetos dos dois primeiros filhos. Quando vem todo mundo aqui, até tiro meu aparelho de surdez. É muito barulho.

Nem sei se vou conseguir chegar ao fim da faculdade. É duro estar aposentado desde os 56 anos e voltar a exigir do raciocínio. Em aulas teóricas, usam uns termos que nem sempre entendo. Na parte prática, sei mais do que estão ensinando, mas não fico me gabando. Quando os professores perguntam se tenho a habilidade de fazer tal coisa, finjo que só conheço mais ou menos. Dia desses, um professor pediu que eu desse assistência à menina que estava sentada ao meu lado, e ensinei a ela como usar o compasso — a ponta “cega” fica fixa no papel, e a outra gira em volta, riscando um círculo.

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Tenho aula todos os dias, das 19h30 às 23 horas. E também no sábado de manhã, ocasião em que algum familiar me leva de carro. Noutro dia, ninguém acordou, então chamei um táxi e fui sozinho. Ficaram doidos atrás de mim. Ué, eu estava na faculdade. Minha filha falou para eu pegar menos matérias por semestre, mas eu disse a ela que, se não aguentar, paro e continuo em outra oportunidade. Certamente começar a estudar não foi um erro. O pessoal me trata bem, e eu me sinto mais jovem convivendo com a molecada. Qualquer hora vou fazer todos os colegas da turma escrever seus nomes na minha plaquinha de calouro. Quero guardar de recordação.

Depoimento dado a Mabi Barros

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2018, edição nº 2576

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