Numa edição comemorativa de seu vigésimo aniversário, a revista ESPN, braço impresso da emissora de televisão, elegeu os vinte esportistas mais influentes deste século. O número 1 é Tiger Woods, o anjo caído do golfe. Na nona colocação, à frente de nomes como Usain Bolt, Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, há uma única atleta do Brasil — assim mesmo, no feminino. A honraria coube a Marta Vieira da Silva, eleita cinco vezes, de 2006 a 2010, a melhor jogadora de futebol do mundo. Dona de duas medalhas de prata olímpicas e um vice-campeonato mundial, ela hoje joga pelo Orlando Pride, dos Estados Unidos. Orgulha-se de sua história, mas se ressente do pouco espaço que lhe dedicam no próprio país. “Se fosse do futebol masculino, a repercussão seria evidentemente maior”, disse Marta a VEJA. Ela tem razão. Há muitas Martas por aí, tentando chegar aonde ela chegou, e certamente com menos oportunidades que os tantos Neymares que buscam a fama, e que também sofrerão no caminho.
Desde 16 de março, uma equipe de VEJA percorre o Brasil na expedição Vozes do Futebol. Durante quarenta dias, ela passará por quinze estados. A ideia é flagrar como o esporte mais querido do mundo mexe com a vida dos brasileiros. Uma série de reportagens será publicada na edição impressa da revista e nas versões para tablet e smartphone. Diariamente, os relatos da viagem podem ser vistos no site de VEJA. Numa das paradas, em Goiânia, os repórteres da revista encontraram mulheres que, apesar da falta de investimento, apesar da dificuldade de romper o alambrado de machismo que cerca o futebol, apesar de tudo, querem ser Marta. É o caso da mineira Daiane Braga, cujo plástico movimento, um voleio, ilustra a foto ao lado. Daiane e sua turma inauguram a coleção de reportagens de Vozes do Futebol por ecoarem uma das mais interessantes facetas de um esporte ainda movido a testosterona no Brasil.
Apelidada de “Carioca”, Daiane joga no Jaó, o atual campeão goiano, que no domingo 25 disputou uma vaga na Série A2 do Campeonato Brasileiro. Perdeu por 3 a 1 para o Napoli, da cidade catarinense de Caçador, e foi eliminado. Funcionária pública, ela tem dupla jornada — fato comum longe dos grandes centros, como Rio e São Paulo, estados em que dá para viver apenas da bola. Quando tem campeonato, Daiane se ausenta do trabalho em São Paulo com uma licença e vai até Goiânia. “Pagam para nós passagens, hospedagem e refeições. Quando vem alguma ajuda de custo, o dinheiro é muito pouco e dá para, no máximo, comprar uma chuteira”, diz a meio-campista de 28 anos, formada em educação física e com uma terceira ocupação: é treinadora de um time infantil masculino em Cotia, em São Paulo.
Ela sorri ao contar que dirige uma equipe de meninos, e não de meninas, um pequeno avanço comportamental, que muitas atribuem às conquistas de Marta com a camisa da seleção brasileira. É uma possibilidade que gradualmente se espalha e dá ao futebol feminino um pouco do tom de empoderamento das mulheres que se vê na sociedade em geral. No Campineira, também de Goiás, clube que tem times masculino e feminino, quem comanda tudo é uma mulher. “O descaso e o preconceito ainda existem, mas já foi pior”, afirma Cristiane Monteiro dos Santos, a Cris, técnica e fundadora do clube. “Certa vez, um colega treinador disse que a minha participação faria do campeonato uma ‘bagunça’. No final do torneio, apertei sua mão e retruquei: ‘O time da mulher foi campeão em cima do seu, que é treinado por um homem’.” São pequenas vitórias que não autorizam a dizer que há profissionalismo adequado no futebol de mulheres. Não há, apesar da existência de duas divisões brasileiras apoiadas pela CBF. Um centro de excelência para o futebol feminino anunciado em 2014, em Foz do Iguaçu, previa captar 60 milhões de reais — não conseguiu um mísero real.
Com produção de Allan Brito (Última Divisão)
Publicado em VEJA de 4 de abril de 2018, edição nº 2576