Ecos da Guerra Fria
Tensão entre Estados Unidos e Rússia, agravada por rusga envolvendo ataque químico na Síria, parece uma volta ao passado — em circunstâncias mais perigosas
“Nós temos de ser duros com os russos. Eles não sabem se comportar”, disse o presidente americano Harry Truman em maio de 1945, quando a II Guerra Mundial se aproximava do seu fim. A frase marca a deterioração das relações entre Estados Unidos e União Soviética, o que poucos anos depois viria a se cristalizar na Guerra Fria. Foi um período de animosidade entre as duas potências que, durante décadas, manteve as tensões militares em altíssimo nível, mas nunca levou a um confronto direto. Ninguém estranharia se a frase de Truman aparecesse em um tuíte do atual presidente americano, Donald Trump. “Prepare-se, Rússia!”, escreveu ele no último dia 11, ao avisar que enviaria mísseis contra alvos na Síria em retaliação a um ataque com armas químicas contra civis ocorrido quatro dias antes, pelo qual o ditador Bashar Assad foi responsabilizado. “Vocês (russos) não deveriam ser parceiros de um Animal Assassino a Gás que mata seu próprio povo e gosta disso!”, continuou o americano no Twitter. Na madrugada do sábado 14, apesar das ameaças do governo russo — que está do lado de Assad na guerra civil síria — de interceptar os mísseis e aviões americanos, Trump cumpriu a promessa e, com a ajuda da França e do Reino Unido, bombardeou três alvos específicos: um centro de pesquisa científica em Damasco e dois depósitos que, segundo as autoridades americanas, guardam arsenal químico nos arredores de Homs.
O ataque não alterará os rumos da guerra síria. Foi calculado para passar a mensagem de que americanos, ingleses e franceses não tolerarão novos ataques químicos. Para não melindrar Moscou, tomou-se o cuidado de não atingir instalações diretamente associadas à presença militar da Rússia na Síria. Horas antes do bombardeio, o secretário-geral da ONU, António Guterres, na abertura de uma reunião infrutífera do Conselho de Segurança, classificou a crescente tensão entre o Ocidente e a Rússia como “uma volta da Guerra Fria com vingança, mas com uma diferença: os mecanismos e as salvaguardas para administrar os riscos que existiam no passado não parecem estar mais presentes”. Ou seja: uma guerra fria mais perigosa que a anterior.
A recente escalada militar entre as potências ocidentais e a Rússia começou em 2015, quando o presidente Vladimir Putin viu na guerra civil síria uma oportunidade de projetar o seu poder para além do seu tradicional quintal geopolítico. Além de opor a Rússia, que herdou a cadeira permanente da União Soviética no Conselho de Segurança da ONU, aos Estados Unidos e aos seus aliados França e Inglaterra (todos também com poder de veto no Conselho), o momento atual guarda outras semelhanças com a Guerra Fria. A primeira é o esforço dos adversários em não travar confrontos militares diretamente, apenas em território de terceiros países, nas chamadas “guerras por procuração”. Essa é a situação na Síria, onde a Rússia ajuda o ditador Assad e os Estados Unidos apoiam rebeldes que tentam derrubá-lo.
A segunda similaridade é a sensação de que as tensões podem subitamente transbordar para um conflito em larga escala. “Como na Guerra Fria, há um medo constante de que o gatilho para um confronto real entre os dois países possa ser disparado a qualquer instante”, diz André Gerolymatos, professor de história militar da Universidade Simon Fraser, em Burnaby, no Canadá. A terceira semelhança é o clima de sabotagem e espionagem. Os Estados Unidos acusam a Rússia de interferir em suas eleições, os russos acusam os americanos de apoiar e financiar a oposição a Putin. A espionagem tradicional foi substituída pela ciberespionagem, mas algumas táticas não mudam: no mês passado, um ex-espião russo refugiado na Inglaterra e sua filha foram envenenados com um agente químico que fazia parte do arsenal soviético. O governo inglês viu ali o dedo da Rússia — e ganhou um motivo a mais para unir-se a Trump no ataque à Síria.
O clima de tensão de agora tem semelhanças com os velhos tempos da Guerra Fria, mas há também diferenças essenciais. Guerras por procuração, sensação de insegurança e clima de espionagem existiram em muitos outros momentos históricos. A Guerra Fria também teve tudo isso, mas sua essência foi, acima de tudo, o embate ideológico entre o bloco de países capitalistas, liderado pelos Estados Unidos, e o de nações comunistas, capitaneado pela então União Soviética. Esse embate de ideias era, para ambos os lados, uma questão existencial. “O avanço do comunismo era uma ameaça para a existência do sistema político americano, assim como o era para o francês, o inglês, e daí por diante. Esse perigo não existe atualmente”, diz Igor Lukes, professor de história e relações internacionais da Universidade de Boston. A disputa ideológica se dava em uma ordem global bipolar, com duas superpotências indiscutíveis, os Estados Unidos e a União Soviética, cada qual sentada sobre um monumental arsenal nuclear. Com a vitória do capitalismo americano sobre o comunismo soviético, as bases da Guerra Fria evaporaram.
“Vivemos em um mundo multipolar, ou melhor, em um mundo unipolar em que a superpotência americana enfrenta a ascensão de potências regionais”, diz Heni Ozi Cukier, professor de relações internacionais da ESPM, em São Paulo. Essa constatação leva a mais uma diferença fundamental: o poder e a influência da Rússia, hoje, são apenas uma fração daqueles que a União Soviética exercia em seu auge.
Se, na realidade, não existe uma reedição da Guerra Fria em curso, pode-se argumentar que o momento atual é ainda mais arriscado. O equilíbrio de poder dos rivais na Guerra Fria fazia com que eles se respeitassem e evitassem cruzar o limiar de um conflito aberto, com consequências catastróficas. Hoje, a ausência desse equilíbrio dá espaço para que países irrelevantes como a Coreia do Norte se tornem uma ameaça global. Na quarta-feira 18, o governo americano revelou que Mike Pompeo, ex-diretor da CIA e futuro secretário de Estado, se reuniu secretamente com Kim Jong-un para discutir os detalhes de um possível encontro do ditador norte-coreano com Trump. Na Guerra Fria, isso teria sido impensável.
Com reportagem de Thais Navarro
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2018, edição nº 2579