Em 1984, de George Orwell, Goldstein é o inimigo comum da nação. Há um programa de TV dedicado a ele: Dois Minutos de Ódio. Todos os dias, os cidadãos sob o regime do Grande Irmão reúnem-se para insultar o dissidente Goldstein, até que a figura do Grande Irmão surja na “teletela” para expulsar o terrível Goldstein — liberando as pessoas para dar seguimento a sua vida, agora calmas, em êxtase.
Pois vejam como a ficção (con)funde-se com a realidade. O professor e advogado Modesto Carvalhosa publicou contundente artigo na edição passada de VEJA, fazendo um arrazoado advocatício para seu pedido de impeachment do ministro Gilmar Mendes, do STF. Não parece ser esse o foro ideal para acostar memoriais. Na verdade, o professor deixou de lado a cátedra e se atirou intensamente na causa. Perdeu aquilo que cobra: imparcialidade. Há uma diferença entre professor e advogado: o primeiro age doutrinando sem interesse em uma causa; já o segundo faz agir estratégico. O que não pode acontecer é pensar que um agir estratégico pode se esconder atrás do advogado queixoso. Não dá para esconder um elefante atrás de uma formiga.
Esse tipo de crítica à Suprema Corte e a seletividade na escolha de quem se vai criticar são uma coisa velha e cansativa. É fácil bater no STF. E agora o vilão no STF é a Segunda Turma, que, de acordo com Carvalhosa, comete ultrajes. Ele poupa o ministro Fachin, provavelmente porque este julga conforme o gosto de Carvalhosa. Ao que se vê, o alvo é determinado pela escolha ideológica do crítico. Isso não é novo. Conhecemos o fator Goldstein.
O STF tem muitos defeitos, porque concede — ou nega — habeas-corpus a ladrões de bombons e a réus ricos e julga causa de índios, células-tronco e tantas outras que é impossível não haver um espaço para espinafrações. Ou seja, como qualquer tribunal, já começa com 50% de torcida contra. Logo, quem critica sempre acerta em um grande porcentual. Mais fácil ainda é usar o que chamo de target effect (fator alvo): atira a flecha em qualquer lugar e depois pinta o alvo. Erro zero.
Li no artigo que, junto à crítica ao ministro Gilmar, o advogado Carvalhosa faz uma crítica por arrastamento, carregando junto os ministros que ele chama de “indefectíveis” (Toffoli, Lewandowski e Marco Aurélio), algo como os quatro cavaleiros do apocalipse do STF. No armagedon, deverão estar, por certo, de um lado, os “bons ministros” e, do outro, os que Carvalhosa considera “os maus”. Certamente o árbitro deverá ser Sergio Moro, cujas arbitrariedades nem fazem cócegas epistêmicas em Carvalhosa.
Carvalhosa fala dos casos que a Segunda Turma julgou mal. Ora, metade da população e da comunidade jurídica pode dizer o contrário. Basta que se tenha um olhar mais ortodoxo sobre a Constituição, como é o meu caso. Sou quase um originalista. Portanto, os casos que o advogado diz que o STF errou, posso dizer, com base na letra da Constituição, que o STF acertou. Fácil.
Na verdade, o advogado Carvalhosa nada mais faz do que utilizar velhos jargões e teses ultrapassadas. Mais de 100 anos atrasado, utiliza — sem se dar conta, óbvio — o dualismo metodológico da dupla formada por Georg Jellinek (1851-1911) e Paul Laband (1838-1918), como se o clamor público ou uma pretensa realidade social pudessem valer mais do que a Constituição. Sim, a partir desses dualismos, juristas como Carvalhosa elogiam toda e qualquer decisão que se afasta da Constituição e se aproxima da “sociedade”. Ora, se verdadeira é a tese, também é falsa. Porque, se o STF tem de ouvir as ruas, ele mesmo assinará sua sentença de morte. Por quê? Porque o STF é o guardião da Constituição, que, causalmente, é o remédio contra as maiorias.
Por que o STF não deve “ouvir as ruas”? Porque é o guardião da Constituição — o remédio contra as maiorias
Como parte de um processo, Carvalhosa faz esse mix de críticas morais e escolhas de inimigos ad hoc. Não tenho procuração da Segunda Turma do STF nem do ministro acusado. Mas tenho procuração da Constituição para dizer que não se pode acusar ninguém utilizando argumentos morais. Os ministros Lewandowski, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar e Toffoli, para desgosto de pessoas como Carvalhosa e setores da mídia, tomaram (Gilmar tardiamente, mas antes tarde do que nunca) o caminho do cumprimento ortodoxo da Constituição, que é clara — falo da literalidade — quanto à presunção da inocência, assim como o artigo 283 do Código de Processo Penal. Se a Suprema Corte está dividida — não se sabe como Rosa Weber votará nas ações que tratam da matéria —, só essa divisão já mostra que Carvalhosa pode não ter razão. Logo, por exemplo, retirar a investigação de Moro de um inquérito ou processo que envolve Lula pode ser apenas rezar pelo catecismo jurídico.
Despiciendo falar das críticas ao uso de passagens de classe executiva. E de comendas recebidas. Bom, nesse caso, seu pedido de impeachment tem de aumentar o rol. As autoridades todas gostam disso. Não posso crer na seriedade de mesquinharias semelhantes às críticas feitas tempos atrás ao presidente da República que comprou um avião. Trata-se de um conjunto de juízos morais sobre alguns membros do STF que julgam contrariamente ao que Carvalhosa considera o certo.
Como não sou advogado da causa (o impeachment pedido por Carvalhosa), apenas observo que suas críticas beiram a acusação de crime de hermenêutica, porque a interpretação feita pelo ministro em um conjunto de casos refoge ao entendimento pessoal do crítico. Faltou só dizer que Gilmar comete crime de responsabilidade (ele e os ministros “indefectíveis”) por não ter obedecido à — agora famosa — tese da colegialidade (que, registre-se, foi a tese que colocou Lula na prisão). Imagine-se o que Carvalhosa diria se Lula tivesse sido solto e graças ao voto de Goldstein.
Talvez Carvalhosa devesse examinar mais amiúde o conjunto dos casos enumerados. Mesmo as decisões liminares do ministro foram confirmadas, ou não, depois, pelo conjunto da Segunda Turma. E descobriria, por exemplo, que, no caso de Gleisi Hoffmann, o voto do ministro Gilmar foi contra os interesses do advogado Rodrigo Mudrovitsch, apontado por Carvalhosa. Ora, votar contra a prisão de um réu é parte do trabalho de ministro. A favor também. Há um colegiado. Descobriria, por exemplo, que, no caso da JBS, patrocinadora de evento da entidade da qual Gilmar é sócio, o IDP (vamos falar de patrocínios a congressos?), Gilmar votou contra a JBS. E assim por diante. Levantar questões de relações pessoais é subestimar o papel de um tribunal constitucional. O jurista americano Ronald Dworkin (1931-2013) dizia: não me importa o que um juiz pensa; nem suas relações pessoais, nem suas subjetividades; ele deve julgar por princípio. Em uma República, se há suspeição ou impedimento, isso deve ser arguido também nos casos em que um habeas-corpus não é concedido. Não quero crer que Carvalhosa esteja mesmo preocupado com a ida de ministros a aniversários e casamentos. Nem os códigos imputam suspeições a isso. Ou impedimentos. De todo modo, devem sempre ser provados. E na hora. E não depois, dependendo do resultado.
O tempo passa. E os dois minutos de ódio de Carvalhosa se esgotaram. Olhemos para a frente. E respeitemos a Constituição. Sua letra vale mais do que as opiniões pessoais. De advogados e de ministros.
* Lenio Streck é professor titular da Unisinos-RS e Unesa-RJ, membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional e advogado
Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581