“Nunca neguei minha cor de pele, eu gosto de ser negro. Sempre admirei muito meus pais, meus irmãos, toda a minha família, de pessoas negras. Mas Deus me pôs num caminho diferente do da maioria da população brasileira, e, desde criança, nunca tive problema com racismo. Em Bauru, meu pai, o Dondinho, que jogara no Bauru Atlético Clube, o BAC, já era muito respeitado. Depois eu também comecei a jogar e, como ia bem, também era bem-visto, bem recebido.
Minha primeira namorada foi uma japonesa. Meus dois primeiros casamentos foram com mulheres de cor branca. Ficou conhecido no mundo inteiro meu namoro com a Xuxa. É claro que existe racismo no Brasil, é um absurdo que exista, e seria desonesto negá-lo. Sei de muitas histórias. Mas, muito cedo, aos 16 anos, fiquei famoso, fui parar na seleção brasileira, nos jornais, na televisão e, por causa dessa sorte, nunca chegaram a me atacar por ser negro.
Vivi alguns episódios, mas nem se comparam a histórias agressivas que lemos na imprensa, e que envolvem pessoas sem fama. Em 1958, na Copa do Mundo da Suécia, de onde saímos campeões mundiais pela primeira vez, ninguém conhecia o Brasil e os brasileiros. Tudo era novidade. As garotas loirinhas da Suécia me pegavam pelo braço, passavam a mão na minha cabeça, na minha pele — queriam ver se a cor pegava, como naquela canção. Quando o Santos jogava na Argentina pela Libertadores da América, mais de uma vez gritaram ‘macaquitos, macaquitos’, para mim e meus companheiros de time. Olhávamos uns para os outros, não entendíamos direito, mas é claro que eram gritos racistas. Estava escrito no jeito deles. O que fizemos como resposta? Decidimos jogar como nunca, e assim foi. Ficaram quietos, bem quietinhos, e nós, vitoriosos.
Quando penso no racismo brasileiro, eu me lembro sempre do encontro com o Nelson Mandela, quando eu era ministro de Esportes do governo do Fernando Henrique Cardoso. Foi emocionante. O Mandela, com toda aquela grandeza, toda aquela história, foi objetivo: ‘Pelé, puxa vida… Como pode um país como o Brasil, tão lindo, onde há um único idioma, sem conflitos segregacionistas e insuperáveis como os da África do Sul, ter de conviver com tanta fome, com tanta miséria — e com o racismo?’. Nem soube o que falar, fiquei envergonhado, ele apenas relatava uma triste realidade. Triste mesmo, e por isso gosto de cantarolar uma música que fiz pensando nessa desigualdade que tanto incomoda: “Não importa a cor / raça ou religião / para nosso Deus / todos somos irmãos”.
Depoimento a Fábio Altman
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2017, edição nº 2557