“Fala-me da colcha que você está fazendo”, pede o médico Simon Jordan (Edward Holcroft) ao enigma feminino postado diante dele na Toronto do século XIX. A criada Grace Marks (Sarah Gadon) passara os últimos quinze anos numa prisão pelo assassinato de seu patrão e da amante dele, em uma fazenda no interior do Canadá. Grace convertera-se em celebridade capaz de instilar amor e ódio: ora era descrita como um demônio de saias, ora como um moça inocente arrastada para a lama pelo serviçal que foi seu parceiro no crime. Para Jordan, expoente da psiquiatria na era pré-Freud, e a quem caberia dar um parecer sobre a sanidade de Grace, os detalhes de seu envolvimento eram fugidios. No entanto, para os espectadores da excelente Alias Grace — série recém-lançada pela Netflix que se inspira no romance homônimo sobre esse caso real, escrito pela canadense Margaret Atwood —, certa agenda feminista fica nítida até na resposta sobre a prosaica colcha. “Toda mulher deve fazer uma antes de se casar. É um aviso em sua cama”, diz Grace. Para a personagem, a cama é o lugar do sono, mas também onde ocorrem coisas perigosas na vida feminina, do parto às relações com os homens.
Sempre lembrada para o Nobel de Literatura, a autora canadense teceu uma obra de respeito combinando a militância com uma prosa eivada de ironia, sutileza e colorido poético. Agora, eis que a TV vive seu momento Margaret Atwood. Antes de Alias Grace, a plataforma americana Hulu já havia conquistado oito estatuetas no Emmy 2017 com sua adaptação do romance The Handmaid’s Tale, o livro mais popular da escritora (em português, O Conto da Aia). A série — que deve ser lançada no Brasil no primeiro trimestre de 2018, pelo pouco conhecido Paramount Channel — é uma distopia forjada para denunciar a opressão contra a mulher. Em um futuro no qual os Estados Unidos se tornaram uma ditadura fundamentalista cristã, um distúrbio causado pela poluição tornou a maioria das mulheres estéril. As poucas ainda férteis são escravizadas como parideiras.
É oportuno que a autora esteja envolvida pessoalmente, em maior ou menor grau, na produção das duas séries: isso acaba conferindo tanto a Alias Grace quanto a The Handmaid’s Tale um certificado de autenticidade, por assim dizer. E abre caminho, sobretudo, para um exercício de comparação fascinante: a possibilidade de investigar quanto a obsessão militante pode fazer bem ou mal para as obras literárias em geral — e para as histórias de Margaret em particular.
Antes de se embrenhar nessa tarefa, é preciso reconhecer: do ponto de vista da realização, ambas as séries são irresistíveis. A fotografia de época de Alias Grace lembra a paleta de um Vermeer. A série é feita com mão de obra quase 100% canadense — e o empenho da turma revela-se exemplar, desde o roteiro, assinado pela musa do cinema indie Sarah Polley, até o elenco, que traz Anna Paquin como a amante assassinada e o veterano diretor David Cronenberg na pele de um reverendo barbudo. The Handmaid’s Tale impressiona igualmente no visual, ao explorar os contrastes entre um militarismo moderno e figurinos femininos que remetem aos autos de fé medievais — e encontra em Elisabeth Moss, de Mad Men, uma valorosa intérprete da aia rebelde Offred.
The Handmaid’s Tale também é feroz — e eficiente — como libelo político: ao defender sua tese segundo a qual a mulher é a maior vítima, mas também a melhor arma civilizatória contra os perigos do fundamentalismo, a autora não tem medo de apontar o dedo para os extremos da violência e da injustiça. Não há como dourar a pílula do inominável, ela parece ressaltar o tempo todo. Como é sina das distopias, porém, o panfletarismo sem trégua torna a série maniqueísta, simplista, previsível — e chata de doer. Distinção importante: embora o livro padeça dos mesmos defeitos, é uma iguaria bem mais agradável de consumir, graças à sua escrita elegante e aparentemente imune aos clichês.
Como livro ou série de TV, Alias Grace ocupa um lugar superior na obra de Margaret. E isso se dá porque, em vez de apresentar uma premissa que em si funciona como julgamento peremptório da conduta humana, ela prefere aqui realçar as nuances da protagonista — como se admitisse humildemente sua incapacidade de julgar os atos alheios. Grace Marks é, sim, uma mulher que carrega a marca da opressão, como tantas em seu século XIX ou nos dias de hoje — a começar dentro de casa, quando enfrentava um pai bêbado, violento e abusivo. O fato de ser mulher influiu, ainda, nos rumos de seu julgamento — talvez, na verdade, a favor dela. Mas, daí em diante, entra-se numa zona cinzenta: Grace pode ser a criatura adorável que vai prendendo os homens à sua volta, inclusive o sensível médico. Ou apenas uma mentirosa contumaz. Como tanta gente real de qualquer gênero, é uma esfinge a ser decifrada.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2017, edição nº 2556