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Décadas da ousadia

A admirável arquitetura paulista dos anos 50 e 60 e as circunstâncias que permitiram sua criação são recuperadas na obra do jornalista Raul Juste Lores

Por Mariana Barros Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 19 ago 2017, 06h00 - Publicado em 19 ago 2017, 06h00
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  • Em 1950, a arquitetura da capital de São Paulo apresentava um nível tão alto que fazia parecer que a cidade se tornaria uma Nova York dos trópicos. Erguiam-se prédios bem pensados, com ofertas a todos os perfis e bolsos e projetos em que a rua era um elemento importante — o que justificava até a inexistência de muros. O espírito cosmopolita, impulsionado pelas levas de imigrantes fugidos da II Guerra, estava na vida que acontecia nas calçadas, mas também da porta para dentro. Aos poucos, a elite econômica trocava antigos casarões por modernos apartamentos. Mas algo deu errado no meio do caminho. A expansão urbana das últimas décadas se traduziu em bairros malfeitos, onde muitas vezes só o carro tem vez, e em uma monótona linha de montagem de espigões de baixa qualidade, nos quais se paga caro para morar mal. Não raro, são prédios que dão as costas à cidade atrás de muralhas quase medievais. “O mercado imobiliário paulistano era o Vale do Silício dos anos 50, com empreendedores e compradores inovadores e rebeldes. Hoje, é das indústrias menos inovadoras que existem, olhando sempre pelo retrovisor”, diz o jornalista Raul Juste Lores, autor de São Paulo nas Alturas. É da época examinada no livro — os anos 50 e também os 60 — boa parte do melhor patrimônio arquitetônico paulistano, como os residenciais Louvre, Parque das Hortênsias e Paquita, o Edifício Itália, o Conjunto Nacional e o Copan.

    Foi observando a noite de Buenos Aires, no início dos anos 2000, quando era correspondente de VEJA na Argentina, que Lores, hoje na Folha de S.Paulo, entendeu o tamanho do problema paulistano. Às 10 da noite, via mães empurrar carrinhos de bebê pela Plaza Vicente López, seguindo o movimento de uma classe média que saía a pé para passear e encontrar amigos. As razões de São Paulo não ter se tornado uma Buenos Aires e muito menos uma Nova York são detalhadas no livro. Lores resgata a importância de arquitetos esquecidos até por seus pares, como o casal Ermanno Siffredi e Maria Bardelli, autores da Galeria do Rock e do Hilton Hotel. Assim como eles, dezenas de arquitetos deixaram a Europa devastada pela guerra e desembarcaram quase sem documentos no Brasil, levando anos para conseguir registro profissional. Ao desvelar os verdadeiros autores de projetos assinados por nomes “emprestados”, o livro, além de render-lhes uma justa homenagem, atesta quanto a cidade é uma criação coletiva.

    Espírito Cosmopolita – O Edifício Itália (à esq.), do alemão Franz Heep, o Copan, de Oscar Niemeyer (ao centro), e o Louvre (à dir.), do arquiteto e construtor João Artacho Jurado, marcos urbanísticos de São Paulo: nos anos 50, o mercado imobiliário era, segundo Juste Lores, tão vibrante e criativo quanto é hoje o Vale do Silício
    Espírito Cosmopolita – O Edifício Itália (à esq.), do alemão Franz Heep, o Copan, de Oscar Niemeyer (ao centro), e o Louvre (à dir.), do arquiteto e construtor João Artacho Jurado, marcos urbanísticos de São Paulo: nos anos 50, o mercado imobiliário era, segundo Juste Lores, tão vibrante e criativo quanto é hoje o Vale do Silício (Vitor Marigo, J.F. Diorio/AE e Gabriel Cabral/Folhapress)

    E isso não vale apenas para os arquitetos: a vida e os tropeços de quem estava do outro lado do balcão, empreendendo e investindo, é contada com o mesmo detalhamento. Nomes como Octavio Frias de Oliveira, que tempos depois se tornaria publisher da Folha de S.Paulo, foram fundamentais. Ele chefiou a carteira predial do Banco Nacional Imobiliário (BNI) e contratou Oscar Niemeyer para fazer o Copan, entre outros prédios. O empresário José Tjurs, dono do Hotel Jaraguá e do Conjunto Nacional, fez encomendas a arquitetos como Rino Levi, Franz Heep e Gregori Warchavchik. João Artacho Jurado, lembrado pelo desenho das fachadas modernistas kitsch revestidas de pastilhas coloridas, lançou loteamentos e ofereceu o mesmo sistema de vendas do BNI, com entrada e prestações fixas. Inovou também na publicidade. Sua construtora Monções patrocinava um programa de teatro na TV Tupi, com Fernanda Montenegro e Tônia Carrero.

    Um dos principais méritos do livro é relembrar que a boa arquitetura não existe sem um mercado imobiliário vigoroso. Se a década de 50 deixou tantos tesouros pela cidade, não foi por um milagre, e sim pela união de interesses entre o grande capital, a vanguarda modernista e o gosto do consumidor. Por mais que o poder público construa, é a iniciativa privada a responsável pela maioria esmagadora do que é feito na cidade. Até mesmo quitinetes ganharam em qualidade quando bons autores e investidores se uniram — microapartamentos projetados por Franz Heep são disputados até hoje. O pensamento predominante nas faculdades de arquitetura, ao contrário, encara empreendedores e arquitetos como água e óleo. Os efeitos da inflação, da recessão e os meandros das linhas de crédito passam longe das salas de aula, e as críticas genéricas ao mercado imobiliário esquecem que a comunhão entre mercado e pranchetas já criou edifícios com plantas de diferentes metragens para atender a diferentes públicos, ou com lojas e restaurantes no térreo.

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    Não é nostalgia que move Lores: ele vê melhorias na São Paulo atual. “O jovem de hoje não vai trabalhar por trinta anos na mesma empresa nem sonha em ter um carro. Ele vai encontrar trabalho e sociabilidade nas ruas”, diz. Recentes encalhes de projetos grandiosos e sem graça reforçam a ideia de que tanto os consumidores quanto o mercado estão mudando. E, com eles, felizmente, a cidade.

    Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2017, edição nº 2544

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