Uma das marcas desta Copa do Mundo, na Rússia, será o gesto dos juízes desenhando no ar um retângulo imaginário, como se num jogo de mímica sugerissem uma tela de computador ou de televisão. É o sinal que os árbitros farão para avisar que um lance capital precisará ser revisto com a ajuda do árbitro assistente de vídeo, o VAR, na sigla em inglês (de video assistant referee). Testada em diversos campeonatos internacionais desde 2016 e oficialmente incluída no restrito livro de regras do futebol em março, a tecnologia por fim sairá da infância e adolescência para entrar na idade adulta. Como instrumento para estabelecer a verdade dentro de campo e evitar discussões bizantinas, o VAR é definitivo, como já ocorre no basquete e no tênis, entre tantas outras modalidades. No mais popular dos esportes, contudo, inaugura um debate, dada a novidade: será que mudará a cadência das partidas e transformará a experiência de acompanhá-las pela televisão ou no estádio?
Os especialistas que seguiram de perto a introdução do VAR apostam num primeiro grande efeito prático: haverá muitos gols anulados por impedimento na Rússia. “Os bandeirinhas vão preferir deixar a jogada rolar, e o árbitro de vídeo que corrija a infração, caso ela tenha mesmo acontecido”, afirma o ex-árbitro brasileiro Sálvio Spínola Fagundes Filho, atualmente comentarista dos canais ESPN. Para os homens e mulheres que levam o apito na boca, a muleta é uma reparação histórica. Afinal, nas últimas cinco décadas, desde a chegada do replay, os juízes foram massacrados publicamente depois de seus erros mais flagrantes serem repetidos à exaustão, em vários ângulos, pelas emissoras de televisão. Para os times e para a torcida, no entanto, a sensação será de anticlímax: antes de soltar o grito de gol, eles precisarão acompanhar atentamente o gestual do árbitro — e se ele desenhar o retângulo?
Na Copa de 2018, o VAR vai ser utilizado somente para checar quatro tipos de jogada: 1) anular um gol ilegal, feito com a mão ou por um jogador impedido (ou validar um gol legal); 2) marcar um pênalti claro e que tenha passado despercebido (ou corrigir uma simulação); 3) expulsar um jogador que tenha cometido falta passível de cartão vermelho direto (e que tenha passado despercebida pelo árbitro); e 4) em caso de confusão de identidade — ou seja, se o juiz mostrar cartão, amarelo ou vermelho, ao jogador errado. A revisão desses tipos de lance será feita por uma equipe de quatro juízes profissionais, instalados em uma cabine dentro do Centro Internacional de Transmissões, em Moscou — treze árbitros se revezarão nessa tarefa, entre eles o brasileiro Wilton Pereira Sampaio, da Federação Goiana de Futebol.
Para não haver confusão, apenas um dos árbitros de vídeo se comunicará com o juiz da partida — os outros três somente analisarão as imagens dos lances e a transmissão em tempo real. Na chamada Sala de Operações do VAR, os árbitros de vídeo serão municiados com as imagens das 33 câmeras de transmissão oficial do jogo, além de duas, exclusivas, dedicadas a verificar a linha de impedimento. É fundamental entender que os responsáveis pelas decisões tomadas a partir do vídeo não passarão os noventa minutos berrando ao ouvido da autoridade no gramado. O profissional na cabine, diante dos monitores de TV, só se manifestará em caso de “erros óbvios”. Ou seja, não será em todo lance decisivo que haverá o sinal de socorro para o árbitro eletrônico. Para os jogadores que gostam de discutir toda marcação da arbitragem, um alerta: quem importunar o juiz no momento da revisão de um lance, ou tentar forçar a barra pedindo a participação do VAR, levará cartão amarelo.
A Fifa garante que a comunicação da aplicação do VAR será clara e rápida, por meio de telões, nos estádios, e cartelas, na transmissão oficial pela televisão. Antecipando-se às inevitáveis gritas, suficientes para aplacar os arroubos de raiva de jogadores, treinadores, cartolas e torcedores — mas não para mudar resultados —, foi decidido que quem se sentir prejudicado pelo sistema, ou questionar a comunicação entre a Sala de Operação do VAR e o juiz no gramado, receberá a gravação da conversa. A princípio, ela não se tornará pública, como ocorre nas corridas de Fórmula 1. “Há quem queira criar um protocolo parecido com o que acontece no tênis ou no vôlei, com a opção do desafio sobre a marcação”, diz Sálvio Spínola. “Mas isso ficará para a próxima Copa. Os dirigentes do futebol não gostam da ideia de ter a autoridade do juiz questionada em campo.”
Mas o VAR já terá valido a pena se puder evitar situações embaraçosas como o célebre gol de mão do argentino Diego Maradona na Copa do México de 1986, que ficou conhecido como La mano de Diós, ou a não expulsão do uruguaio Luis Suárez, que mordeu grotescamente o ombro de um zagueiro italiano em 2014, no Brasil. Antes, porém, será preciso passar por um processo de reeducação — é o que veremos durante as 64 partidas disputadas na Copa da Rússia.
Publicado em VEJA de 20 de junho de 2018, edição nº 2587