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De mente aberta

Ao exibir um cativante super-herói esquizofrênico em sua segunda temporada, 'Legion' encabeça uma tendência: a das séries sobre distúrbios psíquicos

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 mar 2018, 06h00 - Publicado em 30 mar 2018, 06h00

Internado num hospício desde que suas perturbações culminaram em tentativa de suicídio, David Haller (Dan Stevens) gasta seus dias como um típico caso de esquizofrenia paranoide. Sempre dopado, ele percebe à sua volta somente a algaravia dos doidos e a visão de um paciente catatônico babando na cadeira de rodas. A essa realidade de pesadelo mesclam-se delírios, como a companhia de uma figura feminina imaginária, a endiabrada Lenny (Aubrey Plaza). Certo dia, surge do nada uma garota linda e loira com o sugestivo nome de Syd Barrett (Rachel Keller) — sim, homônima do vocalista que comandou o Pink Floyd na primeira e mais lisérgica fase da banda inglesa. Syd lhe apresenta um punhado de amigos estranhos, que dão um jeito de tirar Haller do hospício e mudam ligeiramente seu diagnóstico: na verdade, ele não é louco, mas um mutante dotado de superpoderes mentais. Seus fantasmas não viriam da mania de perseguição: agentes de uma organização real e um certo Rei das Sombras, figura de cara gorda que vive em seu cérebro como parasita, desejam destruí-lo. A essa altura de Legion, série cuja segunda temporada estreia nesta terça-feira, às 23 horas, no canal Fox Premium 2, a confusão já se instalara de vez dentro e fora da cabeça de Haller — deixando deliciosamente aturdido, de roldão, o espectador. “Sabe qual é a coisa mais perigosa sobre a esquizofrenia? É quando sua doença o convence de que você não é doente. Se você acreditar, não tem volta”, resume o personagem, com cândida lucidez.

Psicodelia – Syd Barrett (Rachel Keller): apropriada homenagem ao Pink Floyd (//Divulgação)

Criada por Noah Hawley (de Fargo), Legion é possivelmente a mais heterodoxa produção sobre super-­heróis já vista na TV ou no cinema — ou, no mínimo, a mais aloprada delas. Ao acompanhar sua brilhante primeira temporada (disponível na Netflix), um desavisado não notaria que Haller é um legítimo representante da turma dos X-Men, da Marvel. O que está em pauta em Legion, no fundo, não é a natureza dos superpoderes de seu herói, nem o uso que ele faz deles: é a própria noção de normalidade psíquica. O grande inimigo a ser combatido pelo protagonista está, afinal, no seu inconsciente (ainda que seja longa, na mitologia dos gibis da Marvel, a história do Rei das Sombras, e de como ele foi parar dentro de Haller).

Legion expõe uma tendência inequívoca: estão em voga na TV as séries que exploram a saúde mental por ângulos surpreendentes. Vários distúrbios saltaram das páginas do DSM-5, manual da Associação Americana de Psiquiatria que é a grande referência no ramo, para a tela. O retrato de uma agente com transtorno bipolar oferecido por Homeland contém licenças poéticas, sim — mas não se pode dizer que seja de todo fantasioso. Carrie Mathison, vivida por Claire Danes na série, que atualmente está em sua sétima temporada, exibe alterações de humor radicais. Sofre quando está depressiva, mas o perigo mesmo são suas fases maníacas: em delírios de onipotência, a agente da CIA expõe-se a altos riscos. Heróis autistas também conquistaram seu lugar: o thriller sueco The Bridge (bem como sua versão americana) e a sitcom Atypical mostram que portadores de uma forma branda da doença, a síndrome de Asperger, não só são capazes de se integrar à vida social, mas revelam-se bons tipos ficcionais, graças às peculiaridades de seu modo de pensar e agir. A ascensão de personagens assim é um desdobramento natural da revolução das séries americanas: sua virada, nas duas últimas décadas, se deu com a valorização dos heróis atormentados. O precursor de todos, em Família Soprano, tinha um prontuário notório: o mafioso Tony Soprano (James Gandolfini) sofria de depressão e crises de pânico.

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Desde então, as sutilezas da mente só ganharam mais amplitude na TV. The End of the F***ing World, comédia de humor negro do inglês Channel Four (disponível por aqui na Netflix), consegue renovar mesmo um nicho estabelecido muito antes da nova safra de séries sobre distúrbios psíquicos, dado seu apelo em tramas criminais. Seu protagonista é um adolescente que imagina (e até deseja) ser um serial killer, mas é tudo, menos um psicopata de verdade: sente remorso, nutre emoções delicadas e só na marra vai reagir aos verdadeiros monstros com que ele e uma amiguinha antissocial trombam pela vida.

O retrato da esquizofrenia feito por Legion não é menos complexo — e mostra-se dos mais felizes, tanto no astral quanto na precisão clínica, já vistos na ficção. O apelido ostentado pelo super-herói Haller é de inspiração bíblica: a legião de terríveis vozes interiores que acossam o personagem remete à profusão de demônios que saem do corpo de um homem e possuem uma vara de porcos depois de expulsos por Jesus. A religião professada pela série, contudo, é a fé na cultura pop: da psicodelia riponga ao glam rock do T-Rex, da ficção científica retrô à la Barbarella aos filmes mudos, a narrativa é uma viagem fragmentária cheia de nonsense e irreverência — que no final, quase por milagre, dá liga. O ápice do primeiro episódio da nova temporada é um divertidíssimo duelo em forma de musical com trilha eletrônica. Dan Stevens, vale lembrar, foi aquele ator que pediu para sair do novelão inglês Downton Abbey por não aguentar seu herói almofadinha. Ao ver sua impagável atuação como Haller, com olhos esgazeados e sorriso perturbador, é inevitável concluir: ele fez muito bem em pedir o chapéu na antiga série. Um ator pode fazer uma legião de personagens na vida — mas terá raras chances de ganhar um papel tão doido de bom.


Estados alterados

Se Legion fala da esquizofrenia, outras séries ampliam o leque das doenças mentais retratadas na TV

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(//Divulgação)

Transtorno Bipolar

Carrie Mathison, agente da CIA vivida por Claire Danes em Homeland, é a encarnação rasgada do distúrbio: a heroína que luta contra o terrorismo alterna fases maníacas, nas quais tem delírios de grandeza e invencibilidade,com períodos de depressão lancinante, em que encara insônias infernais e é capaz de pôr a si mesma — e a segurança americana — em risco

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Autismo

No thriller sueco The Bridge, a detetive Saga Norén (Sofia Helin) irrita colegas e testemunhas com seu jeito ríspido. Ser portadora da síndrome de Asperger dificulta as relações sociais, mas traz certa compensação: a alta capacidade de mergulhar nas cenas dos crimes. O jovem Sam (Keir Gilchrist), da sitcom Atypical, vive uma vida feliz com a mesma forma branda de autismo

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Depressão

As tendências depressivas de Hannah Baker (Katherine Langford) afloram com força devastadora quando ela se torna o alvo feminino do bullying dos marmanjos de um colégio americano. A soma de fragilidade mental e tortura psicológica resulta no tema-tabu explorado em 13 Reasons Why: o suicídio juvenil

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Psicopatia

Em The End of the F***ing World, o distúrbio tão explorado nas séries criminais ganha uma abordagem incomum. O jovem James (Alex Lawther) quer ser um psicopata assassino, mas revela-se o oposto disso: sente remorso e desenvolve empatia por sua vítima em potencial, a amiga Alyssa (Jessica Barden)

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2018, edição nº 2576

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