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Criando o mapa da morte

Diálogos captados pela Polícia Civil revelam a estratégia de expansão do PCC e como as lutas entre facções fizeram homicídios explodir em alguns estados

Por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 22 jun 2018, 06h00 - Publicado em 22 jun 2018, 06h00

“Eu tenho mais de trinta cadáveres dentro do meu telefone”, disse Rafael Silvestri, no dia 8 de setembro do ano passado, em conversa telefônica com um comparsa do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior e mais perigosa organização criminosa em atividade no Brasil. Ele se jactava das imagens de inimigos mortos que havia recebido em seu celular de comparsas baseados em vários estados brasileiros. Silvestri é a principal “autoridade” do PCC no Nordeste e, nos últimos seis meses, teve seu sigilo telefônico quebrado pela Polícia Civil de Presidente Prudente (SP) juntamente com o de outros 200 membros da facção. O material, colhido no âmbito de um inquérito sigiloso ao qual VEJA teve acesso, ajudou os policiais a deflagrar, no dia 14, a Operação Echelon, que desvendou o modus operandi usado pelos bandidos do PCC para expandir seu domínio sobre o tráfico de drogas nos estados.

As investigações levaram a constatações preocupantes. Uma delas: os territórios onde a facção trava disputa com outros grupos criminosos pela hegemonia no tráfico são justamente os que sofreram uma explosão de homicídios em dez anos. Nesse período, o aumento do número de assassinatos por 100 000 habitantes, segundo o Atlas da Violência de 2018, é uma matemática de horrores: 256% no Rio Grande do Norte, 121% em Sergipe, 93% no Acre, 86% no Ceará, 74% no Pará e 72% no Amazonas. Tais áreas são as que mais aparecem nas conversas gravadas pela polícia. Identificadas como zonas conflagradas, são rotas estratégicas para a entrada da cocaína no Brasil e seu escoamento para a Europa. Em São Paulo, onde o PCC surgiu e é hegemônico no tráfico, o vetor é inverso: os homicídios caíram 46% na última década. Por isso, dissemina-se a certeza de que o controle da violência em São Paulo não está nas mãos do governo e suas políticas de segurança. Está nas mãos do PCC.

Silvestri, na nomenclatura do crime, é chamado de chefe do “Resumo Disciplinar dos Estados”, uma das funções mais importantes na hierarquia do PCC. Num paralelo com a legalidade, ele seria o “proprietário” de uma franquia responsável por expandir o negócio em uma região específica. Nos últimos vinte anos, o PCC teve um crescimento alarmante no Brasil, mas desorganizado. Isso produziu uma expansão descontrolada do poder do grupo em locais geograficamente distantes do comando central, antes concentrado nas mãos do condenado Marcos Herbas Camacho, o Marcola, preso em Presidente Venceslau (SP). Na última década, sobretudo no Norte e no Nordeste, grupos criminosos rivais, como Comando Vermelho e Família do Norte, fortaleceram­-se e cooptaram líderes do PCC. A figura do “Resumo” surgiu para recuperar territórios perdidos: sua função é recrutar novos filiados, além de fortalecer a recentralização de poder por meio da eliminação de concorrentes.

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Em uma das conversas interceptadas pela polícia, Silvestri conta que recebe “relatórios” diários, via WhatsApp, das “filiais” do Nordeste. Tais relatórios, muitas vezes, são apenas fotos de inimigos executados. Prestação de contas é algo levado a sério no PCC — o tempo todo os mandantes reforçam aos subordinados que hierarquia e organização precisam ser respeitadas porque é isso que os diferencia das demais quadrilhas criminosas. Dessa forma, todas as mortes devem ser documentadas com fotos e enviadas às “instâncias superiores”. Na investigação, a polícia encontrou provas de um “número indeterminado de homicídios”, que ultrapassa uma centena. Em uma conversa, uma liderança de São Paulo obriga um subordinado de Campo Grande (MS) a desenterrar um desafeto para fazer o “relatório” que não fora entregue antes. Em outro diálogo telefônico, um preso comemora sua marca de 100 assassinatos ao longo da vida. “Depois entra aí na internet, só para você ver as minhas obras de arte. Coloca ‘briga de facções’ no Google”, diz.

Para estimular a filiação de novos membros nos territórios em conflito, o PCC tem afrouxado as regras de “admissão”, dispensando, por exemplo, filiados de outros estados de pagar a taxa mensal cobrada pela “proteção” do comando. Em troca, cada membro deve trazer pelo menos uma pessoa para o bando. Ao projeto foi dado o nome de “Adote um irmão”.
De Presidente Venceslau, Marcola continua comandando o crime. Ficou um ano em Regime Disciplinar Diferenciado (o temido RDD, em que a comunicação entre detentos é inexistente e o preso só pode falar com advogados e membros da família). Ao sair do RDD, no entanto, no fim do ano passado, Marcola reassumiu a liderança da facção, segundo a polícia. Uma de suas funções é dar aval às mortes planejadas pelo PCC. Isso fica claro em uma conversa interceptada em 11 de dezembro de 2017. Nela, Silvestri diz a um interlocutor que uma morte foi executada e uma dívida anulada porque as ordens vieram da “última instância”. “É Venceslau, é a final”, afirma, em referência à cidade paulista onde fica o presídio de Marcola. Há algo de muito errado em um país em que a última instância vem a ser a palavra de um bandido preso.

Publicado em VEJA de 27 de junho de 2018, edição nº 2588

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