Charada cômica
A um só tempo acessível e inteligente, bobo e sofisticado, ‘A Noite do Jogo’, com Jason Bateman, revive a arte hoje quase esquecida da comédia abilolada
Em uma sequência de pastelão sublime, Max (Jason Bateman, perfeito) descobre que sangrou em cima do cachorrinho branco como nuvem de seu vizinho — cujo quarto ele invadiu sob falso pretexto. Max esfrega o cachorrinho com um pano, despeja sobre ele uma garrafa d’água e, a cada nova tentativa, piora a situação de maneiras extraordinariamente desastradas e hilariantes. Não é a toda hora que se vê uma comédia como A Noite do Jogo (Game Night, Estados Unidos, 2018), a um só tempo acessível e inteligente, boba e sofisticada, e quase que inteiramente gratificante.
Partindo de uma premissa que não é em si nova — a do jogo que se confunde perigosamente com a vida real —, mas que em geral é explorada em registro de suspense (Vidas em Jogo, dirigido por David Fincher em 1997) ou mesmo de ficção científica, os diretores John Francis Daley e Jonathan Goldstein redescobrem a arte hoje quase esquecida da comédia screwball, ou abilolada. Sem humor crasso nem escatológico, sem ironias destinadas a iniciados nem maldade para com seus personagens, a dupla conhecida pelos roteiros de Quero Matar Meu Chefe e Homem-Aranha — De Volta ao Lar crava sua mira tanto no humor quanto na ação e na tensão. Mais que tudo, seu êxito está na vivacidade, nos diálogos deliciosos, nas gags tão criativas quanto eficazes e na habilidade para lidar com o elenco não como uma hierarquia de protagonistas e coadjuvantes, mas como uma trupe cômica em que todos cumprem um papel e têm seu próprio destaque.
Max e Annie (Rachel McAdams) se apaixonaram à primeira vista porque são ambos competitivos, entusiasmados e viciados em jogos de adivinhação e conhecimentos gerais. Uma vez por semana, reúnem-se com amigos para uma rodada. O policial Gary (Jesse Plemons), vizinho deles, adoraria se juntar ao grupo, mas ninguém quer convidá-lo desde que ele se separou da mulher que idolatra e ficou ainda mais esquisito. Driblar a marcação dele é um tormento. Max, além disso, está nervoso porque Brooks (Kyle Chandler), seu irmão mais velho, mais alto, mais bonito e mais cool, está para retornar à cidade. Brooks já chega ostentando: muda o encontro para sua mansão e contrata uma agência especializada em levar a brincadeira ao limite, encenando um sequestro que os jogadores terão de solucionar. A certa altura, o grupo percebe aquilo que o espectador já sacou: que o sequestro que se está desenrolando é verdadeiro. Ou não? O convite a encontrar a resposta é aberto: assim que a confusão começa, também a plateia é instigada a resolver a charada. Ainda que não ganhe o jogo, ela vai ganhar o dia.
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2018, edição nº 2582