Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Caindo na rede

Neymar é o representante mais fulgurante, mais rico e mais controverso futebolista de nosso tempo, cujos passos são exibidos o tempo todo na internet

Por Alexandre Salvador e Luiz Felipe Castro, de Moscou, com Luisa Bustamante
Atualizado em 30 jul 2020, 20h16 - Publicado em 29 jun 2018, 06h00

Houve dois Neymares na Copa do Mundo até agora. O Neymar cai-cai, o reclamão, o dissimulado, o cavador de pênalti, personagem das duas primeiras partidas, contra a Suíça (1 a 1) e a Costa Rica (2 a 0). E houve o Neymar que entrou em campo diante da Sérvia: sem exageros, jogando para o time, mais um entre os onze, e não o único, o rei-Sol. Pode-se atribuir essa transformação ao cartão amarelo que recebeu ao queixar-se acintosamente ao juiz holandês no jogo com a Costa Rica. Com risco de levar o segundo cartão e perder a disputa das oitavas de final, contra o México, na segunda-feira 2, o camisa 10 parecia manso em Moscou ao enfrentar os sérvios. O Brasil ganhou por 2 a 0, jogou bem — à exceção de uns quinze minutos de sufoco — e, milagre, Neymar saiu do estádio como coadjuvante.

Coadjuvante talvez não seja o termo mais adequado para defini-lo, em qualquer cenário. O Neymar ruidoso e o Neymar calado serão sempre notícia, e o destino da seleção na Rússia estará de qualquer modo colado ao craque do PSG. Provocado por VEJA a comentar a tranquilidade do jogador no desfecho da primeira fase, o treinador Tite saiu-se com esta: “Assuntos particulares eu não exponho de forma pública”. Depois, avançou um pouco no raciocínio, à sua maneira, falando em titês, ao descrever como lida com o time: “Se está pilhado, jogamos para menos; se está menos pilhado, jogamos para cima”.

Tite, inadvertidamente, tocou no ponto central de Neymar, que o faz ser como é, e que exigiu um freio: para o atacante, tudo precisa ser exposto de forma pública por meio de seu principal modo de comunicação, o Instagram. Depois de marcar o gol contra a Costa Rica, nos acréscimos, ele postou, entre magoado e provocativo: “Nem todos sabem o que passei para chegar até aqui, falar até papagaio fala, agora fazer… poucos fazem”. Foi curtido por mais de 7 milhões de pessoas, a começar por Gisele Bündchen e seu marido, Tom Brady, pelo blogueiro Whindersson Nunes, Luciano Huck etc. etc. etc. etc. etc. No voo de Moscou para Sochi, com as oitavas garantidas, voltou a subir foto no Instagram com comentário, em temperatura bem mais amena: “Time, equipe, companheiros, família, ou chame como quiser, unidos e focados em um único objetivo”. Em 24 horas eram quase 2,5 milhões de curtidas.

RECLAMAÇÃO - No Instagram: “Falar até papagaio fala, agora fazer…” (Instagram/Reprodução)

O cara é um fenômeno nas redes sociais. Aos 26 anos, tanto na versão ofendido (“até papagaio fala”) quanto na versão boa-praça (“time, equipe”), Neymar é o típico craque dos novos tempos, um jovem que não sai do smartphone. É uma prática que faz com que as partidas de damas e dominó das Copas de 1958 e 1962 entre Didi, Pelé e turma pareçam uma ingenuidade de séculos atrás. Midiático, Neymar respira a repercussão de seus atos. Transmitiu quase ao vivo a temporada de recuperação no Brasil do dedinho do pé quebrado, entre partidas de pôquer e colo para a namorada, a atriz Bruna Marquezine.

Na Copa, Neymar anda menos prolífico, mas não para. Ressalve-se que ele vive como seus pares — no Brasil, o tempo médio que os jovens passam on-line é de nove horas por dia, quatro delas pendurados no celular. Segundo o Global Web Index, que acompanha o tema mundialmente, os brasileiros conectados perdem somente para os filipinos. Para o atacante, não é apenas vício ou necessidade de comunicação — é negócio. No ranking da empresa americana Hookit Engagement, que acompanha valores de patrocínio a esportistas nas redes sociais — e compilados até maio, antes, portanto, da Copa —, Cristiano Ronaldo é o atleta com mais seguidores, 320 milhões. O brasileiro vem em segundo, com 192 milhões — são 280 000 novos fãs digitais por mês. Em maio, ele postou 81 vezes — ante 75 do português e 22 de Messi, para ficar apenas entre os três grandes. Quem zela pelas postagens de Neymar é ele mesmo e uma equipe comandada pelo pai, o chefão de toda a máquina de fazer dinheiro, mais os já famosos “tóis”, os amigos que o cercam e estão na Rússia. Se não publicam, é certo que curtem e comentam, num incessante processo de retroalimentação de troças, comentários, celebrações.

Com exceção da namorada, que mantém sua carreira de atriz, os amigos são sustentados por Neymar — ou trabalham para Neymar. Como retribuição à vida de conforto e luxo proporcionada pelo amigão — alguns vivem em Paris —, são os primeiros a disparar a artilharia de xingamentos quando o comportamento do jogador é criticado por alguém. Depois do jogo com a Costa Rica, vociferaram contra Galvão Bueno e Casagrande, e também são os primeiros a postar mensagens bajulatórias. O movimento contra a dupla de apresentador e comentarista da Rede Globo obrigou Neymar pai a intervir. Já na Rússia, com a Copa em andamento, ele costurou um pacto de não agressão com a emissora carioca. Enviou a seguinte mensagem ao grupo de “parças”: “Pessoal, Neymar pai falando. Gente, segura as redes sociais com xingamentos direcionados a quem quer que seja. (…) Vamos esquecer os antis e seja lá quem for. Vamos vencer essa Copa com a torcida e a premissa de Deus. Sei quanto vocês amam meu filho e querem protegê-lo, mas essas atitudes só irão contaminá-lo com a mesma revolta, por ele também amá-los. Vamos usar as armas e escudos certos, com oração e fé de que no final tudo dará certo, se Deus quiser”.

Continua após a publicidade
OS PARÇAS No restaurante, o craque com os amigos inseparáveis, porta-vozes para o bem e para o mal (//.)

Apesar do permanente potencial de confusão, a rotina de publicações de Neymar é realmente um excelente negócio. Embora Cristiano Ronaldo tenha mais seguidores nas redes, os patrocinadores preferem Neymar. A empresa de inteligência em marketing esportivo Sportcal verificou que ele é o número 1 de propaganda entre todos os jogadores da Copa. São dezesseis contas, que o fizeram embolsar 39,2 milhões de dólares, o equivalente a 150 milhões de reais — e ele ainda recebe 226 milhões de reais anuais de salário no PSG. Segundo a consultoria Hookit, ao longo de 2017 o valor médio de um post de Neymar chegou a 3 milhões de reais, nos casos em que falou de algum produto ou apenas apareceu em foto vestido a caráter com três das marcas que o bancam, a Nike, a Replay (de moda jovem) e a Gaga Milano (relógios). Cristiano Ronaldo está perto, com 35,9 milhões de dólares amealhados. Messi, o mais discreto dos três, tem 32,7 milhões de dólares.

A engrenagem funciona bem quando Neymar faz gols, ganha títulos e é aplaudido. Mas, dada a constância com que ele sobe o tom, talvez porque seja realmente o melhor no que faz, o bumerangue invariavelmente volta. É um craque querido — as crianças gostam dele, o que atesta o seu carisma —, mas fazer troça com Neymar virou esporte nacional. Nunca, em toda a história da internet, se viu tamanha profusão de memes relacionados aos maus hábitos do craque, seus chiliques, seu gosto aparentemente incontrolável pela queda no gramado e, é claro, ao cabelo, sobretudo na versão “miojo”. Evidentemente, Neymar é alvo de zagueiros que batem, batem e batem — mas nem assim ele é absolvido. Mesmo mais controlado na vitória contra a Sérvia, ao ser atingido na lateral, rolou 423 vezes pelo campo.

Continua após a publicidade
FAMÍLIA - A atriz Bruna Marquezine, a namorada, com a irmã de Neymar, Rafaella, na Rússia (//.)

O tabloide inglês Daily Mail fez uma matéria inteira utilizando comparações com tombos ridículos no cinema. Um motel em Manaus reproduziu em um quarto montagens do craque caído na piscina, na cama redonda, na poltrona e até agarrado a um poste de pole dance. A cédula de 100 dólares ganhou o rosto de Neymar no lugar do de Benjamin Franklin e a previsão: “Agora o dólar cai”. Sem falar na selfie do ex-craque francês Eric Cantona com um prato de espaguete na cabeça, comparando seu “penteado” ao de Neymar.

O que se pergunta, e talvez não tenha resposta clara, é qual o efeito dos contra-ataques na cabeça de Neymar. O choro depois do gol foi reação genuína de quem carrega o peso descomunal das exigências de um país inteiro, cujas expectativas, quando se trata de futebol, são sempre máximas. Para o psicólogo do esporte Paulo Ribeiro, as redes sociais deveriam ser evitadas pelos jogadores em períodos de alta tensão, em torneios curtos. “No meio de uma competição como a Copa, dar ouvidos às redes termina por desestabilizar o jogador”, diz. Mais realista, a também psicóloga Suzy Fleury, que atendeu jogadores da seleção em 1998, pondera que o distanciamento é impraticável, mas deixa um alerta: “Não há como Neymar, um nativo digital, não participar das redes. Uma pessoa com o perfil dele, muito sociável, acaba se expondo, o que abre margem para críticas. Então ele tem de estar muito bem resolvido para aguentá-las”.

Continua após a publicidade

Aguentará? É o que descobriremos contra o México. Um ex-assessor muito próximo de Neymar, que prefere não se identificar para não causar animosidades, acredita que o círculo em torno do jogador, montado pelo pai, funcionaria no tempo em que “no futebol só prestava quem fazia gol, e quem fazia gol virava ídolo, mas isso hoje já não basta”. Não saber administrar todo o resto — a vida profissional, as relações com a imprensa — pode prejudicar a imagem de um ídolo popular. “O me amem do jeito que sou não funciona mais”, afirma esse ex-assessor. Para o ortopedista José Luiz Runco, ex-chefe do departamento médico da seleção, que acompanhou o time durante dezesseis anos, até 2014, há um impasse. “O futebol virou um grande business e os jogadores se acham estrelas de rock. Mas eles precisam estar preparados, porque os rock stars têm público que só bate palmas. O deles não é assim.”

Uma solução para essas questões, inspirada no que ocorre fora do Brasil, é o amparo psicológico ao atleta, o que evitaria a frequência com que Neymar pode ser um e seu avesso — e muitos outros jogadores também. Mas, por incrível que pareça, não há na seleção profissionais de apoio psicológico, como houve em 1998. Evidentemente, esse tipo de trabalho não resolve todos os problemas. A Alemanha levou para a Rússia uma equipe motivacional, como fez em 2014 no Brasil, e deu no que deu, com a vergonha passada diante da Coreia do Sul. O México tem um profissional desse ramo, e só não disse adeus à Copa, ao perder da Suécia por 3 a 0, porque os alemães conseguiram ter desempenho pior. Mas, em relação ao Brasil, parece haver unanimidade.

Diz Eduardo Cillo, psicólogo do esporte com doutorado pela Universi­dade de São Paulo: “Nossa seleção vai do céu ao inferno e volta muito rapidamente, as mudanças de humor são constantes”. É temor real, embora dentro do hotel da canarinho em Sochi a preocupação soe exagerada. “Que­ríamos ter dez jogadores como o Neymar”, diz um dirigente de alto coturno. Tite, hábil em lidar com atletas, sabe que um modo de diminuir o nervosismo é chamar a coisa pelo nome que a coisa tem, antes de explodir. Quando Neymar caiu em prantos, o treinador soltou a vacina: “Também já chorei. Chorei de alegria, de satisfação (…). Não podemos perder nossa essência e achar que um momento de emoção possa ser sinônimo de desequilíbrio”. Talvez falte combinar com os russos, porque, segundo o sociólogo Roberto DaMatta, “o que nos diferencia são as expectativas, que aumentam a pressão. A expectativa é tão grande sobre a seleção e sobre o Neymar que isso os agiganta. E, quanto maiores forem, maior será o tombo”.

Continua após a publicidade

Com reportagem de Gabriel Gama e Alexandre Senechal


Quem vai rir por último?

NO CHÃO - Troça à mania que Neymar tem de se jogar no gramado, mesmo sem falta (//Reprodução)
TITE –  Ele caiu no gol do Brasil — e, na piada, virou capoeirista com Neymar (//Reprodução)

 

Publicado em VEJA de 4 de julho de 2018, edição nº 2589

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.