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Bom é nascer livre

O bairro de Soweto, onde uma matança de crianças abriu os olhos do mundo para o apartheid, virou cartão-postal da África do Sul em transformação

Por Monica Weinberg, de Joanesburgo | Fotos: Cris Veit
Atualizado em 30 mar 2018, 06h01 - Publicado em 30 mar 2018, 06h00

Quem olha para a África do Sul de hoje acha que o país anda para trás. Do time dos Brics, como o Brasil, a nação de Nelson Mandela sacolejou nas últimas semanas com o fim da era Jacob Zuma, o presidente que foi forçado a renunciar e agora é investigado por uma avalanche de denúncias de corrupção. No Parlamento, uma lei recém-aprovada revolveu o caldeirão racial ao permitir o confisco de propriedades de brancos, e sem indenização. A economia patina, o desemprego sobe. No entanto, uma visita ao local que virou símbolo das aberrações do apartheid, o célebre subúrbio de Soweto, a meia hora do centro de Joanesburgo, revela quanto a África do Sul avançou desde que derrotou o antigo regime de segregação dos negros, em 1994, e começou a construir um outro país, certamente menos racista. Foi há pouco mais de duas décadas — um soluço no curso da história.

Soweto entrou no mapa quando jovens estudantes se ergueram contra o regime e foram trucidados por uma repressão brutal. O massacre aconteceu em 16 de junho de 1976 e exibiu ao mundo imagens de crianças abatidas pelas armas do apartheid, que acabou imprensado por um boicote internacional. Maior gueto daqueles tempos sombrios, Soweto se tornou então um marco da resistência. Foi também o lugar onde Mandela, ex-­presidente e Nobel da Paz, morto em 2013, começou a costurar a luta contra a supremacia dos brancos. A casa onde ele (que faria 100 anos em julho) viveu por quase duas décadas ainda está lá, convertida em festejado museu, assim como a Orlando West High School, escola onde se iniciou a matança de 1976. Seus atuais alunos, integrantes da geração born free (nascida livre) dos tentáculos do apartheid, aprendem sobre o levante na aula de história e têm altos planos para o futuro. “Para os que nasciam aqui, o objetivo era sobreviver. Agora é estudar e crescer na vida”, diz o economista Lumkile Mondi.

A paisagem das South Western Town­ships, conjunto de distritos de cujas iniciais nasceu o nome Soweto, é cheia de contrastes. Pulsante centro de compras de fachada arrojada, o Maponya Mall não fica muito longe do Bagdá, um mercadão a céu aberto onde se vendem ferramentas, fraldas de bebê e galinhas. Barracos brotam na esteira da falta de emprego, mas a vizinhança endinheirada de “Beverly Hills” (apelido um tanto superlativo) está ali para lembrar que é possível encontrar maneiras de ter uma boa vida. O Soweto Country Club oferece grama novinha aos praticantes de golfe. Carros importados fazem a festa dos lava-jatos, um tipo de negócio que prospera na Soweto de hoje.

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O PH Network Sportsbar é um dos pontos de concentração da cúpula local do Congresso Nacional Africano (o CNA, que chegou à Presidência com Mandela e está lá até hoje) e de uma vibrante classe de empreendedores. “Quem investe em Soweto olha para o mercado interno e o externo, os turistas que não param de chegar”, diz Wesley Mofokeng, de 41 anos, que, sim, já teve um lava-jato, mas agora trabalha no departamento de educação em Pretória, a sede do poder. Os donos dos maiores negócios são negros que escaparam das garras do apartheid, fizeram dinheiro fora e voltaram para o país, ou os que tiveram a veia para empreender potencializada pelo farto crédito distribuído com o fim do regime. “Eles querem se mostrar, se exibir. É o Soweto celebração”, define o sociólogo Thembani Nyoni.

Como um espelho da África do Sul, o subúrbio ainda tem mais de metade de seus habitantes na pobreza, mas a imensa maioria dos born frees tem acesso pelo menos ao básico — casa, água encanada, saneamento, eletricidade. Antes, as duas altas torres de energia da área abasteciam lares de brancos em outras partes, enquanto os negros ficavam à míngua. Hoje, desativadas, são coloridas, grafitadas e se prestam à prática do bungee-jump. O progresso no que há de mais elementar à sobrevivência contribuiu para derrubar a assombrosa taxa de mortalidade infantil no primeiro ano de vida de 58 para 34 a cada 1 000 nascidos — índice registrado em Soweto e, também, na África do Sul como um todo. A queda ocorreu ao longo de uma década, mas a taxa continua elevada. No Brasil, são catorze mortos para cada 1 000 nascidos. O vírus HIV, que atinge 30% das mulheres grávidas, contribui para inflar a estatística. Percebe-se um esforço para acolher crianças pequenas em creches e pré-­escolas, um bom começo para romper o ciclo da pobreza.

Mesmo que o melhor ensino de Joanesburgo ainda se concentre em outras áreas, Soweto tem as portas da educação abertas — e a nova geração do antigo gueto atribui a isso um valor especial. “Meus pais mal pisaram numa sala de aula. Já eu quero estudar matemática ou filosofia, talvez os dois”, afirma Thato Mahlatsi, de 17 anos, um dos melhores alunos da Orlando West High School. E qual a diversão desses jovens? A mesma de qualquer adolescente de classe média no Brasil. Mahlatsi vai ao estádio de futebol assistir ao clássico Orlando Pirates versus Kaizer Chiefs (e isso é “cool, oh man”), devora séries americanas, vive atracado ao celular e não encontra muito estímulo na política, embora escute falar em casa dos horrores que os pais e avós sentiram na pele. “Eles gostam muito mais de festa do que do debate político”, diz Joseph Malindi, de 60 anos, diretor da Orlando West.

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NO FRONT – Nelson Mandela (à dir., em 1958) começou a costurar em Soweto a luta contra o domínio dos brancos: tudo o que leva seu nome está na moda (Jurgen Schadeberg/Getty Images)

Nos tempos de segregação, vigoravam dois sistemas na educação: o dos brancos e o dos negros — este baseado na ideia de que eles não precisavam ser ensinados a desempenhar tarefas elaboradas. Muitos não tinham aula de ciências nem de matemática. Em seus colégios estavam os piores professores. As classes reuniam cerca de 100 alunos de idades misturadas, que se revezavam para conseguir um canto na sala superlotada — assim o turno escolar não passava de duas, três horas por dia. Os negros pagavam pelos livros, os brancos não. Um dia, suprimiram a 1ª série do ensino fundamental da grade das escolas Bantu, como eram conhecidas. Depois veio a imposição de ensinar as matérias, já dadas em inglês, também em africâner, língua que tem na raiz o holandês dos colonizadores. Math (matemática, em inglês) virou rekenkunde, e ninguém entendia mais nada. “Eu estava começando a aprender a escrever, e eles mudaram o idioma na escola”, lembra Thomas Ntuli, de 49 anos. Em protesto, os alunos fechavam os livros. Foi o estopim para o levante de Soweto.

Que ninguém espere encontrar nessas bandas, onde reside atualmente 1,5 milhão de pessoas (98% negros, um sexto da população da Grande Joanesburgo), o caos urbanístico de uma favela brasileira. O local nasceu de uma ação coordenada do governo segregacionista para manter os negros longe das áreas ocupadas pelos brancos, mas ainda próximos do centro, de modo que pudessem atender à demanda por braços de um país que se industrializava. Para os negros, havia uma rota só — casa-trabalho-casa, por uma única via que percorriam carregando um passe que limitava sua locomoção. Nos anos 1960, os negros de outras áreas eram deportados para Soweto e instalados em casas, todas iguais umas às outras. O cirúrgico planejamento do passado deu lugar a um efervescente fluxo de imigrantes de todo o continente, magnetizados pelas promessas (nem sempre concretizadas) da nação que se autoproclama um “arco-íris”, devido à sua variedade étnica.

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A economia cambaleante aparece na elevada porção de desempregados — 28% hoje no país. Alguns que tinham subido caíram. “Trabalhava servindo chá no centro da cidade, mas me dispensaram e tive de vender minha casa”, lamenta Mercy Viryelwa, de 55 anos, que se mudou para um barraco de chapa de zinco onde abriga as netas Siphokazi e Soyama, de 4 e 6 anos. Diz Soyama, com jeitinho adulto: “A situação vai melhorar”. As garotas estão matriculadas em uma pré-escola, mas Mercy se preocupa quando brincam na rua. Sempre houve gangues em Soweto — que subornavam a polícia em troca de não ser incomodadas —, mas eram menores. Elas cresceram, ganharam envergadura e andam faturando alto com o comércio de drogas, em especial de nyao­pe (explosiva mistura de heroína, ácido e veneno de rato). “Às vezes ouvimos tiros e corremos para dentro de casa”, diz Jenine Thomas, de 33 anos, mãe de quatro filhos, apertando no colo Blaine, o caçula de 2 meses.

O mapa de Soweto parece um xadrez harmonioso de etnias — zulus, xosas, sotos — agrupadas em vizinhanças. Mas o apartheid deixou marcas fundas que até hoje influem no convívio em sociedade. Quando o regime implodiu, Mandela, o primeiro presidente negro do país, implantou políticas afirmativas que viriam a se ampliar. Atualmente, empresas públicas devem empregar 80% de negros (a mesma proporção em que aparecem na população) e as companhias que negociam com o governo precisam tê-­los como donos de pelo menos 26% das ações. A minoria branca se queixa do que muitos chamam de nova segregação. “Os brancos eram cidadãos de primeira classe e os negros, de terceira. A história está virando”, diz Freda Smith, de 67 anos, moradora de Soweto, que se posiciona, ela mesma, na “eterna segunda classe”, a dos pardos. “Antes não éramos brancos o suficiente; agora não somos negros o suficiente”, resume ela, que custou mas se acostumou aos novos ventos. “Passava por um branco na rua, olhava para o chão para não encará-lo nem ofendê-­lo e mudava de calçada. Era automático. Fui me adaptando à liberdade.”

Quando o apartheid ruiu, o governo decidiu canalizar vultosos investimentos para Soweto, com a ideia de fazer do ex-gueto a vitrine do novo país. Virou atração turística. O coração do roteiro que atrai estrangeiros é a Rua Vilakazi, justamente onde, no número 8115, viveu Mandela — sua polêmica ex-mulher e parceira de ativismo, Winny, ainda mora no bairro. Um pouco mais adiante na Vilakazi está a antiga casa do bispo Desmond Tutu, outro Nobel da Paz. Professora de uma creche que funciona dentro de uma igreja perto dali, Fisokuhle Mdzebu, de 29 anos, exibe o barrigão de nove meses nesta terra quente, colorida e musical. Mãe de uma menina de 6 anos, ela tem os olhos fixados no futuro: “Meus pais não estudaram e eu parei antes da faculdade, mas meus filhos certamente terão muito mais”. A nova geração ainda canta a música-­hino Another Brick in the Wall, do Pink Floyd, cujo refrão diz “hey, teachers, leave them kids alone” (“professores, deixem as crianças em paz”), inspirada na Soweto do levante. Mas não é mais pela letra, apenas pela bela melodia.

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Melhor começar pelo começo

Um bom empurrão – Julia, em sua creche: dinheiro do governo pode ajudar a impulsionar a qualidade (Cris Veit/VEJA)

Ao largar o emprego de executiva em uma empresa de turismo para abrir uma escolinha em Joanesburgo, Julia Muteba, de 42 anos, foi imediatamente rotulada de louca. “Vai passar a vida tomando conta de criança? Isso é o mesmo que ser dona de casa”, ouvia, sem nunca vacilar: “Acho que sou boa nisso. Posso fazer diferença”. A iniciativa de uma turma como ela, bem preparada e com pendor para o empreendedorismo, está ajudando a África do Sul a atacar uma questão fundamental: oferecer boas creches e pré-escolas de modo a dar às crianças o incentivo certo na hora certa, já nos primeiros anos de vida — preocupação relativamente nova por lá, assim como no Brasil. Nas altas-rodas acadêmicas, porém, não há dúvida de que essa é a trilha mais eficaz para guindar um país aos mais elevados patamares. “Um bom começo é vital para formar gerações saudáveis, produtivas e capazes de inovar”, diz André Viviers, especialista em desenvolvimento da primeira infância no Unicef.

Na África do Sul, o ensino só é obrigatório a partir dos 6 anos (no Brasil, é aos 4), o que significa que o Estado não tem responsabilidade pela educação antes dessa idade — e as iniciativas existentes são tocadas por gente que vê nisso uma missão, um negócio, ou os dois. Desse jeito, surgiu um sistema (se é que se pode chamar assim) insuficiente na abrangência e heterogêneo na qualidade, que avança pouco a pouco. O país tem 42% de seus 7 milhões de crianças de até 6 anos fora da sala de aula. Até 2030, o governo tem um plano para colocar 100% das crianças a partir do primeiro ano de vida na escola.

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Para acelerarem o processo, os sul-­africanos encontraram um jeito de lidar com a escassez de escolas para crianças pequenas justamente impulsionando investimentos como o de Julia — um modelo que pode servir de inspiração para o Brasil, onde quantidade e qualidade nesse terreno também custam a germinar. Como é caro e lento erguer uma rede decente em grande escala, a África do Sul abriu os cofres federais para pôr dinheiro nas creches e pré-­escolas privadas já existentes. As contrapartidas são a obediência a certos padrões de infraestrutura e o treinamento de seus profissionais. Mais e mais gente tem apostado na primeira infância. Sim, o sistema que emerge daí é heterogêneo no tamanho das escolas e no nível de excelência — algo que vai demandar uma depuração. Às vezes, mesmo com todos os controles e peneiras (nem sempre tão eficientes quanto deveriam ser), nascem estruturas excessivamente caseiras, incapazes de fomentar aquilo de que precisam. O resultado é uma armadilha para qualquer país: nove de cada dez meninas e meninos entram na 1ª série do ensino fundamental sem o preparo ideal para enfrentar os desafios intelectuais que os aguardam, fragilidade que se percebe sobretudo entre os mais pobres, segundo relatório do próprio governo.

Aos 70 anos, sem emprego mas com uma boa casa, Ana Evelyn Matsoso está prestes a receber o benefício do governo para sua creche, que funciona entre um cômodo e outro tomados de bibelôs e quadros nas paredes, como o bem emoldurado diploma escolar do neto mais velho. “Educação é uma coisa que eu valorizo, que eu sempre quis e não tive para mim. Agora vou oferecê-la a quem não tem”, diz ela. Um labirinto burocrático a separa dos recursos federais. “Exigem uma papelada enorme. Cada departamento quer ter protagonismo, e um acaba se sobrepondo ao outro”, avalia Nicole Biondi, da Innovation Edge, que apoia a inovação nessa área com fundos como o do eBay. A briga pelos holofotes oficiais é familiar aos brasileiros. “Para chegarmos a algum lugar, precisamos costurar melhor as várias alçadas envolvidas no cuidado da criança”, admite Lesley Bamford, do Mi­nis­tério da Educação sul-africano. Se o país quiser mesmo fazer jus à autoproclamada “nação arco-íris”, terá de necessariamente começar pelo começo. O mesmo vale para o Brasil.

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2018, edição nº 2576

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