Astros em extinção
Cientistas dos campos da astronomia e da ecologia se unem para desenvolver um sistema de monitoramento que auxiliará na conservação de animais em risco
Desde 1800, uma vertente da astronomia passou a se dedicar ao estudo da luz infravermelha emitida por astros longínquos. Invisível a olho nu, essa luz é perceptível pelas ondas de calor geradas por átomos que se movimentam conforme são afetados pela força da gravidade de estrelas e planetas. O avanço científico permitiu o desenvolvimento de telescópios espaciais que, a partir do século XX, começaram a detectar astros a anos-luz de distância, justamente com o uso de lentes sensíveis às flutuações de calor. O mais célebre deles é o Hubble, lançado em 1990 pela agência americana Nasa.
A novidade é que agora a mesma técnica aplicada para explorar o cosmo está sendo usada para esclarecer assuntos terrenos: o rastreamento de animais em risco de extinção e a detecção de suas condições de saúde. A ideia, no futuro próximo, é monitorar cada exemplar das espécies ameaçadas, de modo a protegê-las.
A iniciativa nasceu da parceria entre dois cientistas europeus. Um deles é astrofísico; o outro, ecologista. Ambos são pesquisadores da Universidade John Moores, na Inglaterra. O detalhe: além de trabalharem juntos, eles eram vizinhos. Certo dia, o inglês Steven Longmore (o astrofísico) e o holandês Serge Wich (o ecologista) conversavam animadamente sobre os problemas do mundo. Wich reclamou da dificuldade em contar os animais em extinção, processo manual e cansativo. O colega, habituado a ver estrelas, teve um momento de eureca e sugeriu usar, na identificação e contagem dos bichos na Terra, a forma adotada para estudar os astros distantes no espaço sideral.
“Se na astronomia é necessário enviar telescópios com lentes enormes ao espaço, no trabalho de conservação basta acoplar uma pequena câmera a um drone”, disse Longmore em entrevista a VEJA. “É mais fácil e mais barato.” O progresso tecnológico ajudou a impulsionar a nova empreitada de cuidado com a fauna. Há uma década, uma câmera sensível ao calor instalada nos drones seria um investimento de 400 000 reais. Hoje, sai por cerca de 40 000.
A iniciativa da dupla de pesquisadores foi divulgada ao público no último dia 4, durante a conferência anual da Sociedade Astronômica Europeia, na Inglaterra. O trabalho começou em 2015, quando foi realizado um pioneiro teste em uma fazenda inglesa no qual se provou a possibilidade de diferenciar padrões de calor emitidos por humanos dos propagados por vacas em um pasto. A partir da comprovação de que era possível enxergar as nuances da temperatura corporal de cada espécie, identificando-as tão somente por esse quesito, os cientistas ampliaram o trabalho e partiram para os testes práticos. A inovação já foi experimentada para registrar elefantes asiáticos do zoológico de Chester, também na Inglaterra, e rinocerontes no Deserto de Karoo, na África do Sul. Segundo Longmore, o desafio será adaptar o recurso para ambientes menos propícios ao rastreamento, como hábitats de vegetação mais densa ou de elevadas temperaturas. “Pelos métodos anteriores, era enorme a dificuldade de coletar dados sobre os animais em risco. Esse trabalho pode ser revolucionário”, afirmou o ecologista Wich a VEJA.
Três destinos estão no cronograma dos próximos dois anos de experiências. A primeira parada será na Ilha de Bornéu, na Ásia, onde os cientistas procurarão por orangotangos. Depois planejam viajar para o México, em busca de macacos-aranha. Por fim, eles chegarão ao Brasil, onde os drones sensíveis ao calor devem rastrear botos-cor-de-rosa na Amazônia. Na sequência, a ideia é compartilhar a tecnologia com cientistas ao redor do planeta. O resultado será um banco de imagens térmicas das diversas espécies, da mesma forma como astrofísicos registram as diferentes estrelas detectadas universo afora.
“O sonho é um dia usar satélites em órbita para observar e proteger a Terra e sua fauna diretamente do espaço”, ambiciona o astrofísico inglês Steven Longmore
Além de monitorar as espécies, a nova tecnologia poderá ser empregada para flagrar ações criminosas contra os animais em risco. Dada a eficácia do mecanismo para fazer rastreamentos durante o período noturno, será possível usá-lo para verificar a ação de caçadores ilegais, que comumente saem em busca de suas presas depois que escurece justamente para não ser pegos pelas autoridades. “O sonho é um dia usar satélites em órbita para observar e proteger a Terra e sua fauna diretamente do espaço”, vislumbra o astrofísico Longmore. Uma iniciativa desse gênero poderá ser um antídoto contra uma estatística que tanto empobrece nosso planeta: todos os dias cinco espécies de animal ou planta são extintas em decorrência de atividades humanas. Se der certo, o engenho humano terá chance de vencer certas previsões catastróficas sobre a vida na Terra.
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2018, edição nº 2579