O barista que tira seu café, os criminosos com quem ele trabalha, a nova garçonete da lanchonete que ele frequenta: todas as pessoas a quem Baby se apresenta param, encafifam e então pedem que ele soletre seu nome — b-a-b-y, que calha de ser uma das palavras mais banais da língua inglesa. Baby não se abala; a cada solicitação, soletra com o mesmo compromisso, e como se não fosse óbvio. Interpretado por Ansel Elgort (de A Culpa É das Estrelas) com certa cara de bebê mesmo, e com oceanos de charme — equiparados à direção infinitamente espirituosa de Edgar Wright —, Baby é um personagem que pode estar no caminho trilhado pelo Ferris Bueller de Curtindo a Vida Adoidado, de 1986: tornar-se emblema de um estado de espírito ideal da juventude, além de sinônimo de um temperamento adorável, aberto para a vida, que seria desejável em qualquer idade.
O protagonista de Em Ritmo de Fuga (Baby Driver, Estados Unidos, 2017; em cartaz a partir desta quinta-feira) mal saiu da adolescência e já é um hábil motorista de carros de fuga, como demonstra a prodigiosa sequência sem cortes da abertura, tão cheia de manobras impossíveis (feitas na raça pelos dublês) que se reage a ela com gargalhadas de exultação: Baby faz miséria ao volante sem nem tirar os fones nos quais ouve Bellbottoms, do The Jon Spencer Blues Explosion. A música, na verdade, é indispensável; ele cronometra cada nova fuga com uma faixa específica para ela. Baby fala pouco, ouve música o tempo todo — literalmente o tempo todo, o que explica as 43 canções listadas nos créditos — e fica na sua quanto pode. Mas não é fácil, considerando o tipo de companhia com que ele anda.
Em dívida com Doc, um chefão do crime interpretado com gosto por Kevin Spacey, o garoto não tem alternativa senão aceitar as incumbências perpetradas por um revezamento aterrorizante de tipos escusos — entre os quais, o brutamontes vivido por Jon Bernthal, o psicopata de Jamie Foxx e o finório encarnado com alegria por Jon Hamm, sempre agarrado a uma morena fatal (Eiza González) que encoraja seus maus instintos. Doc é a razão das desventuras de Baby, mas é também o único anteparo entre ele e a doidice desses comparsas em assaltos a bancos, edifícios e até postos de correio. O pai adotivo de Baby (CJ Jones), um velhinho magro e surdo, é um dos seus calcanhares de aquiles, claro. E o outro acaba de surgir na sua vida — a tal garçonete nova, uma doçura a quem Lily James, de Downton Abbey, confere delicadezas inesperadas.
O inglês Edgar Wright já tem no currículo o cult de primeira grandeza Todo Mundo Quase Morto, de 2004, uma paródia tão hilariante quanto amorosa dos filmes de zumbi. Tem outros bons filmes que combinam sátira e carinho, sempre com o amigo Simon Pegg no papel principal — a exemplo de Chumbo Grosso, paródia de histórias de duplas de policiais. Em Ritmo de Fuga, porém, é sua primeira parceria com Ansel Elgort (espera-se que não a última), e o artigo mais genuíno: é feito com tanta imaginação e paixão, e tanto comprometimento pessoal de todos os envolvidos, que ultrapassa com folga os limites dos filmes que quer homenagear (como Acossado, de 1960, de Jean-Luc Godard) ou satirizar (como Drive, de 2011, com Ryan Gosling).
Wright, além disso, é um diretor que vem refinando seu domínio técnico a cada novo trabalho: perseguições de carro têm por definição excitar e causar incredulidade, e ele cumpre a missão com honras — chegando à minúcia de editar cada cena de fuga ou tiroteio precisamente contra as batidas da música de fundo. Mais que tudo, é a própria autoconfiança narrativa de Wright que vem crescendo. Em Ritmo de Fuga é como um torniquete que de início nem se percebe estar lá, tão folgado ele está. Mas Wright o aperta um pouco mais a cada cena, até que Baby não mais possa se esquivar da violência da situação. É uma mudança de marcha delicada. A não ser que se seja um ás da direção.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2017, edição nº 2540