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Andar para a frente

Ao lado da onipresença de novas tecnologias, as metrópoles deverão assistir à redescoberta do modo primordial de se locomover: a pé

Por Marianne Wenzel
Atualizado em 31 ago 2018, 07h00 - Publicado em 31 ago 2018, 07h00

Poucos carros nas ruas, um ar saudavelmente respirável, nenhuma buzina. Era esse o cenário das cidades brasileiras, inclusive as principais metrópoles, durante a crise de abastecimento que parou o país no fim de maio. Diante da ameaça de pane seca, parte da população trabalhou em casa e o restante foi para o escritório de transporte público, de bicicleta ou a pé. Agora, imagine tudo isso ocorrendo sem o pano de fundo da greve dos caminhoneiros, com todas as demais con­se­quên­cias — o que lhe pareceria? Pois esse é, em larga medida, o futuro da mobilidade em conglomerados urbanos de países em desenvolvimento, de acordo com um abrangente estudo internacional realizado pela consultoria Mc Kinsey & Company em parceria com a instituição de pesquisa Bloomberg New Energy Finance e divulgado no fim de 2016.

Outros dois prognósticos apontados pelo documento, que investiga o horizonte da mobilidade em 2030, tratam de cidades espraiadas de países desenvolvidos, como Los Angeles, e de metrópoles ricas e com alta densidade populacional, caso de Chicago, Hong Kong, Londres e Singapura. Para o primeiro grupo, o que se prevê é a adoção generalizada de veículos elétricos e autônomos, além do pedágio urbano. No segundo, a expectativa é que as fronteiras entre os meios privados, compartilhados e coletivos, venham a se confundir. A mobilidade resultará da combinação entre todos — de forma barata, sob medida e ambientalmente correta, administrada por meio de plataformas que entregarão o serviço da melhor rota ao gerenciar fluxos multimodais de tráfego.

Nas três previsões, existe um denominador comum: veículos autônomos. “O ano de 2016 constituiu um marco nessa área, com parcerias, fusões e aquisições. Foi o início da revolução digital voltada para o transporte”, atesta Luis Antonio Lindau, diretor do World Resources Institute (WRI) para Cidades Sustentáveis. “Pode demorar trinta anos para chegar aqui, mas vai chegar”, aposta ele. Segundo Lindau, o grande atrativo dessa tecnologia reside na segurança viária — algo relevante para o Brasil, detentor da triste estatística de 47 000 mortes no trânsito em 2017, a terceira maior do planeta, de acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde. Há, entretanto, um risco. Considerando o apego do brasileiro ao transporte individual, sem a adoção de uma legislação específica é possível que venham a existir mais carros autônomos particulares em circulação do que compartilhados, o que geraria o efeito oposto ao desejado. “Automóvel autô­nomo não é serviço de valet”, observa o arquiteto Artur Mausbach, pesquisador do Royal College of Art, de Londres. “Se bem utilizada, essa possibilidade pode mudar a ideia de espaço na cidade. Não se trata mais de um carro, e sim de um ambiente itinerante, com outros usos”, acredita.

Numa realidade em que nem a simples sincronização de semáforos funciona a contento, falar de “inteligência artificial” e até de “internet das coisas” aplicada à mobilidade parece futurismo. Contudo, já há aqui chips para pagamento de pedágio, cartões de transporte abastecidos por apps, monitoramento de itinerários em tempo real… Certamente a conectividade ampliará seu campo de atuação nessa área. São Francisco, nos Estados Unidos, já provou a eficácia de alguns recursos inovadores. “Lá, os estacionamentos na região central registram os momentos de alta demanda. Os preços sobem, e os usuários ficam sabendo pelo aplicativo. Com essa informação, eles decidem se querem mesmo ir guiando ou se preferem buscar alternativas”, exemplifica a arquiteta Myriam Tschiptschin, coordenadora do núcleo de smart cities no Centro de Tecnologia de Edificações, consultoria em sustentabilidade que funciona na capital paulista.

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O gargalo de tudo isso, curiosamente, é a adesão das pessoas. “Ainda falta entender até que ponto elas querem estar conectadas, porque a internet das coisas vem invariavelmente com oferta de serviços, e, no caso brasileiro, saber como será a regulação disso”, comenta Artur Mausbach. “E as prefeituras precisam lembrar que, antes de ‘consumidores on-line’, somos ‘cidadãos’. Informações como quais linhas passam e em que pontos não devem depender de internet das coisas.”

CRUZAMENTO - Pedestres e veículos em Londres: fluxos múltiplos (2009 Watchlooksee/Divulgação)

Alguns entraves no âmbito da mobilidade não dependem, é verdade, da ampliação da conectividade virtual — a paralisia do poder público diante do tamanho do problema, por exemplo. Para o arquiteto Jaime Lerner, responsável pela invenção do BRT em Curitiba, ainda nos anos 70, as respostas a essas questões não virão prontas, nem, menos ainda, de uma só vez. “O mais importante é resolver as pequenas tragédias do dia a dia, em vez de tentar encontrar todas as soluções antecipadamente. Isso aumenta a burocracia, que é medrosa”, orienta ele. “Melhor fazer o possível, agora, pôr em teste e ir ajustando. Os gestores devem ter a coragem de tentar e de trabalhar com continuidade”, afirma.

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Outro limitador é puramente estrutural. “A boa mobilidade está sempre associada à baixa expansão urbana. Portanto, enquanto não se contiver o espraiamento das cidades, enfrentaremos obstáculos cada vez piores para nos deslocar”, alerta Alejandra Devecchi, gerente de planejamento urbano da Ramboll, consultoria dinamarquesa com atuação internacional. Segundo a especialista, São Paulo possui uma densidade de 100 habitantes por hectare; assim, “é preciso no mínimo quadruplicar esse índice para financiar a infraestrutura de transporte, do contrário ela sempre vai requerer subsídios”. Na opinião de Alejandra, o desafio brasileiro de reverter a expansão das cidades talvez não encontre paralelo no mundo. “Trata-se de uma situação muito particular. Gente ocupando mananciais e áreas de risco, vivendo em acampamentos. Isso é a ‘não cidade’ — e não pode se tornar o nosso futuro urbano”, critica. “A chave para resolver essa questão está no mercado, na oferta maciça de moradia nas regiões mais centrais”, conclui ela.

Se todos os obstáculos que se impõem atualmente a uma melhor mobilidade urbana forem superados, é seguro afirmar que nas próximas décadas, para além da presença expressiva das novas tecnologias nas ruas, andar a pé de casa para o trabalho voltará a ser regra, e não exceção — como em um dia de revolta das boleias, por exemplo.

Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598

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