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Além da lenda

O legado musical do violonista e compositor João Gilberto mostra que o artista é mais importante que o personagem excêntrico que ele se tornou

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 15 dez 2017, 06h00 - Publicado em 15 dez 2017, 06h00

João Gilberto, o personagem, vem prevalecendo sobre o artista João Gilberto. Fala-se demais de sua já folclórica esquisitice e das incontáveis ocasiões em que levou produtores, técnicos de som e executivos de gravadoras à loucura. Ficam esquecidos o toque singular do violão, o estilo de canto ao pé do ouvido e o repertório que uniu a modernidade que grassava entre os jovens cariocas dos anos 50 a sambas e boleros do início do século passado. Notícias da reclusão quase patológica do músico célebre evocam outros ermitões modernos, como Little e Big Edith Bouvier, socialites americanas que acabaram na penúria. A diferença é que as Bouvier só mereceram a atenção pública por serem parentes de Jacqueline Kennedy. O homem recluso no Leblon é de outra, mais alta estatura: João Gilberto é o inventor da bossa nova.

Tom Jobim foi o maior compositor do novo estilo de fazer samba; Vinicius de Moraes, seu primeiro letrista de importância; o jornalista e letrista Ronaldo Bôscoli, o arauto do gênero; e Carlos Lyra, Nara Leão e Roberto Menescal, entre tantos outros, foram suas revelações. Mas foi o violão de Gilberto que deu à bossa nova o formato pelo qual ela ficou conhecida. Gilberto Gil, um dos muitos discípulos do cantor e violonista baiano, define o estilo do ídolo como “samba desossado”. A batida de violão de João Gilberto, que ele apresentou a uma roda de privilegiados em 1957, sintetiza o samba. E imprime sua marca singular: João Gilberto apropria-se das canções que canta, atrasando ou acelerando o andamento delas de acordo com sua concepção — uma característica que lhe rendeu o epíteto de recompositor, dado pelo músico Luiz Tatit. Só alguém assim transformaria uma canção tolinha como O Pato em clássico.

Em seu período pré-bossa nova, João Gilberto ostentava uma voz possante, bem de acordo com a interpretação “estoura-peito” dos anos 1940 e 1950. Fez parte de grupos vocais como Garotos da Lua e Anjos do Inferno. Somente na segunda metade da década de 50 ele assumiu o canto sussurrado que é sua marca. João Gilberto soube aproveitar a evolução dos microfones, que captavam seu tom baixo com melhor clareza. Detratores fazem troça da voz miúda — o toni­truan­te Nelson Gonçalves dizia que João Gilberto era o “fim de noite”. Mas sua suavidade ímpar impactou gerações de cantores: Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Roberto Carlos são seus devedores. Nacionalistas acusavam a influência imperialista do jazz sobre a bossa nova, que realmente buscou elementos do cool jazz de Chet Baker e Gerry Mulligan. No entanto, a via é de mão dupla: Tony Bennett, ­John Pizzarelli e Diana Krall estão entre os muitos jazzistas que se encantaram com a interpretação macia de João Gilberto. Sua colaboração com o saxofonista Stan Getz no clássico Getz/Gilberto, de 1964, foi em pé de igualdade.

A bossa nova modernizou o samba, mas modernidade não prescinde de tradição. João Gilberto foi, na sua geração, quem apresentou o repertório mais abrangente. Em seus discos cabiam tanto canções de seus contemporâneos (Tom Jobim, Carlos Lyra) quanto o cancioneiro de Ary Barroso, Janet de Almeida e Haroldo Barbosa. Ele até releu antigos sucessos de Orlando Silva (Aos Pés da Cruz). A migração para os Estados Unidos e posteriormente para o México nas décadas de 60 e 70 abriu o leque de canções: seus discos desse período trazem standards de jazz, boleros e até música italiana, todos em interpretação tipicamente joãogilbertiana.

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A audição perfeita de João Gilberto também faz parte da lenda. Uma das histórias mais peculiares a esse respeito foi contada por Luiz Galvão, letrista dos Novos Baianos. Certa vez, de carona com João Gilberto, Galvão notou que ele só parava no sinal vermelho quando estava para passar um carro na via transversal: o ouvido absoluto conseguia discernir a aproximação de outros veículos. Sua bronca com casas de show de acústica duvidosa viria dessa sensibilidade extrema, e também daí nasceria a longa pendenga judicial com a EMI, afinal vencida por João Gilberto, pela posse das masters de seus três primeiros discos — os antológicos Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sor­riso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961). Um executivo conta que, no meio da disputa, João Gilberto alegou que essas gravações originais haviam sido adulteradas a mando da rainha da Inglaterra, receosa de que o brasileiro vendesse mais que os Beatles. Mas aqui já voltamos ao personagem: João, o excêntrico, o homem das manias e dos caprichos. O artista é mais simples: uma voz, um violão, uma batida.


A revolução de João

Por que o cantor, que pouco compôs, foi fundamental para a bossa nova

O VIOLÃO — A mão direita de João Gilberto reduz o samba à sua essência: o polegar assume a função do surdo e os outros dedos são os tamborins. Sua famosa batida tornou-se o marco do samba novo

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A VOZ — O cantor aboliu os vibratos e os vocais “estoura-peito” do passado. Canta quase sussurrando, mas com uma ótima emissão vocal

O REPERTÓRIO — A bossa nova foi a modernização do samba, mas nunca perdeu a tradição de vista. João Gilberto deu nova roupagem a clássicos de Ary Barroso, Dorival Caymmi e Herivelto Martins, entre outros

Publicado em VEJA de 20 de dezembro de 2017, edição nº 2561

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