Durante a campanha presidencial de 2020, Joe Biden condenou o príncipe saudita Mohammed bin Salman, o notório MBS, pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, que fazia oposição à Casa real e por isso foi morto e esquartejado. A Arábia Saudita, disse ele então, “tem de pagar o preço e ser tratada como pária que merece ser”. Pois Biden, agora premido por várias e incômodas circunstâncias, embarcou na quarta-feira 13 para uma atribulada visita de quatro dias ao Oriente Médio — primeiro a Israel e territórios ocupados e depois a Jeddah, onde apertará a mão do desafeto MBS.
O motivo mais evidente para a virada de casaca do presidente americano é o petróleo, sempre ele. Os sauditas lideram a Opep, a associação dos maiores produtores globais, que tem em seus poços o poder de controlar os preços dos hidrocarbonetos. Diante dos aumentos de preços decorrente das sanções contra a Rússia pela invasão da Ucrânia, que fez a inflação disparar no mundo todo, o grupo concordou em elevar modestamente sua produção, de modo a segurar os valores, mas quer um aumento substancial. Biden vai lá para tentar mudar esse estado de coisas e obter um respiro nos gastos dos aliados com combustível (os Estados Unidos são autossuficientes, mas também sofrem o impacto do barril a mais de 100 dólares).
A visita, no entanto, tem um componente geopolítico mais amplo: no Oriente Médio redesenhado pelos Acordos de Abraão, implantados por Donald Trump, o Irã é o inimigo comum contra o qual todos têm de se armar. Ao pôr os pés em Israel, inclusive, Biden foi logo demarcando as fronteiras ao afirmar que “está na mesma página” que os países anti-Irã, Arábia Saudita entre eles. “Esta aproximação serve a objetivos de longo prazo, além da questão do combustível”, avalia Sean Yom, pesquisador da ONG Project on Middle East Democracy, de Washington. “Os Estados Unidos contam com a influência da Arábia Saudita para garantir seus interesses na região do Golfo Pérsico.”
As tensões entre o Irã e seus vizinhos se intensificaram nos últimos meses com uma série de supostos atentados israelenses dentro do território iraniano, confrontos esparsos com forças apoiadas por Teerã na Síria e o recrudescimento do programa nuclear dos aiatolás, que Biden quer frear tecendo um novo acordo (ainda difícil), como deixou claro em sua visita. Israel, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e partes do Iraque dizem estar sob ataques de drones e mísseis atribuídos a milícias apoiadas pelo Irã.
A mudança da configuração no Oriente Médio acelerou a criação de alianças antes improváveis entre Israel e o mundo árabe. Na última visita de Biden a Jerusalém, quando ainda era vice de Barack Obama, o país só tinha laços diplomáticos com o Egito e a Jordânia. Desde 2016, Bahrein, Marrocos e Emirados Árabes Unidos entraram para o clube. Em março, os ministros das Relações Exteriores de todos esses países (menos Jordânia), e mais o secretário americano Antony Blinken, posaram para uma foto inimaginável até pouco tempo atrás, ao fim de sua primeira reunião, em um kibutz de Israel. Acredita-se que a próxima a cruzar a porta seja a própria Arábia Saudita. “Não vamos anunciar uma normalização com os sauditas nesta viagem”, avisou o embaixador dos Estados Unidos em Israel, Thomas Nides. Mas que é um passo nessa direção, é.
Um dos pontos dos acordos patrocinados pelo governo Trump prevê o fortalecimento da coordenação militar entre Israel, aliados árabes e militares americanos com a construção de uma rede de radares envolvendo nove países, com tecnologia israelense e bases dos Estados Unidos. A ambição americana é criar uma espécie de Otan no Oriente Médio. “A antes inabalável parceria dos Estados Unidos com países do Golfo está sendo afetada por uma maior abertura deles para a Rússia e a China. Biden quer reforçar os laços com seus aliados”, explica Imad Harb, diretor de pesquisa do Arab Center em Washington.
A questão palestina, que esteve durante décadas no cerne dos desentendimentos no Oriente Médio, perde importância neste novo contexto. A Casa Branca direcionou 500 milhões de dólares em financiamento para as áreas sob administração da Autoridade Palestina, mas não reverteu desaforos orquestrados por Trump, como considerar legítimos os assentamentos israelenses na Cisjordânia e mudar a embaixada para Jerusalém. “Os palestinos veem cada vez mais os Estados Unidos como adversário, em vez de aliados”, diz Rashid Khalidi, professor de história árabe na Universidade Columbia. Em nome dos interesses americanos, e da necessidade de se posicionar como líder do mundo livre (leia-se anti-China e anti-Rússia), Biden intensifica as viagens pelo mundo. Nesse esforço diplomático, vale até se sentar com antagonistas.
Publicado em VEJA de 20 de julho de 2022, edição nº 2798