Quando Michel Temer assumiu a Presidência, em maio de 2016, reuniu sua turma de longa data — homens acima de 70 anos e originários do PMDB da Câmara dos Deputados — e proferiu um discurso pontuado por mesóclises e palavras como “confiança”, “moral” e “união”. Petistas ainda empacotavam suas caixas para deixar o Palácio do Planalto quando Temer terminou sua fala, construída para apresentar um presidente pró-reformas, anticrise e a favor da Lava-Jato. Nem 500 dias se passaram para que dessa imagem pouco restasse. Temer não conseguiu fazer com que as reformas andassem, a crise política só se aprofundou e a Lava-Jato engoliu metade, a principal metade, do seu governo. Além disso, Temer estabeleceu, ele próprio, um recorde penal: acaba de ser denunciado criminalmente pela segunda vez.
Antes da segunda denúncia, já tinha cravado dois marcos. 1) Passou a ser investigado criminalmente: o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso autorizou a abertura de inquérito contra ele para apurar sua participação no esquema que teria beneficiado empresas do setor de portos, em especial a Rodrimar. 2) Foi acusado pela Polícia Federal de liderar uma organização criminosa: a PF enviou ao Supremo um relatório em que diz haver indícios de que o presidente era a figura central de um organograma composto de mais de uma dezena de peemedebistas dedicados à prática de ilicitudes diversas, notadamente a da corrupção.
No fim da tarde da quinta-feira 14, surgiu o terceiro marco: Temer foi denunciado formalmente pela Procuradoria-Geral da República, que, com base no relatório da PF, o acusou de organização criminosa e tentativa de obstrução da Justiça. A denúncia da PGR diz que, após a queda de Dilma Rousseff, houve uma “reformulação do núcleo político da organização criminosa” dedicada à prática de corrupção no governo. Com isso, “integrantes do PMDB da Câmara, em especial o presidente Michel Temer, passaram a ocupar esse papel de destaque”. O grupo de Temer, diz a denúncia, valeu-se de seu poder em órgãos públicos para receber 587 milhões de reais em propinas. Isso mesmo: mais de meio bilhão de reais. Faziam parte desse grupo — e foram denunciados por organização criminosa — os ex-ministros Henrique Alves e Geddel Vieira Lima, os ex-deputados Eduardo Cunha e Rodrigo Rocha Loures e os ministros Eliseu Padilha e Moreira Franco. Temer foi o único político denunciado também pelo crime de obstrução da Justiça por ter, segundo a PGR, instigado o empresário Joesley Batista a comprar o silêncio do doleiro Lúcio Funaro e do ex-deputado Eduardo Cunha, conforme revelou a gravação feita por Joesley.
Da primeira denúncia criminal, por corrupção passiva, Temer se livrou graças à boa vontade e gratidão de deputados que, por 263 votos a 227, impediram que se transformasse em réu no STF. Agora, Temer terá de reaglutinar sua base para se livrar da segunda denúncia.
Não há paralelo na história do Brasil de uma situação em que um presidente tenha sido alvo de tantos percalços penais no exercício do mandato. Fernando Collor foi investigado somente depois de renunciar, em 1992 — e terminou absolvido pelo STF 22 anos depois das acusações de peculato, falsidade ideológica e corrupção passiva. Luiz Inácio Lula da Silva não chegou nem sequer a ser investigado no processo do mensalão. Já Dilma Rousseff foi alvo de um impeachment decorrente de uma infração administrativa. A chamada “pedalada fiscal” integra o rol de “crimes de responsabilidade”, mas não tem nenhuma relação com a esfera penal. Na América do Sul, há alguns exemplos de presidentes investigados no decorrer do mandato: Cristina Kirchner, na Argentina, por tentar maquiar o suposto papel do Irã num atentado antissemita de 1994, e Carlos Menem, também na Argentina, investigado em mais de uma ocasião por corrupção passiva. Depois de deixar a Casa Rosada, Menem chegou a ser condenado a sete anos de prisão pela venda ilegal de armas ao Equador e à Croácia entre 1991 e 1995. Mas cumpriu pena domiciliar. Na Venezuela, o presidente Carlos Andrés Pérez, reeleito em 1989, foi investigado e acusado de desvio de recursos públicos, o que acabou motivando seu impeachment, em 1993.
A segunda denúncia também se baseia, em parte, no relatório de 494 páginas da PF. Ela diz que o presidente lidera uma organização criminosa composta de parlamentares do PMDB da Câmara dos Deputados — o chamado “quadrilhão” do PMDB. Segundo a PF, Temer detinha “poder de comando” sobre o grupo e há indícios de que tenha recebido, sozinho, 31,5 milhões de reais em vantagens, sob o disfarce de doações eleitorais. Na terça-feira 12, ao tomar conhecimento do teor do documento, Temer distribuiu nota à imprensa em que afirmava que “facínoras roubam do país a verdade”. Não disse, contudo, quem seriam os malfeitores.
A exemplo da primeira denúncia apresentada, a de agora terá de ser submetida à Câmara dos Deputados. Só com a aprovação dos parlamentares é que Temer poderá responder ao processo no Supremo. Poucos apostam que o resultado será diferente desta vez. Isso porque, assim como nas ruas, as vozes contrárias ao presidente no Congresso quase não se têm feito ouvir. O veto à primeira denúncia cristalizou a aliança de Temer com o centrão, soldada à base de promessa de cargos, distribuição de emendas e temor de retaliação aos infiéis. “A classe política está assustada e sofrendo de escassez de recursos. O custo de pular fora do barco é alto”, afirma o cientista político Christopher Garman, diretor-geral para as Américas da consultoria Eurasia. Ainda que resista no cargo até o fim do mandato, Temer terá pouco tempo para dar algum sentido às promessas que fez no seu discurso de estreia na Presidência. Acusado, investigado e duas vezes denunciado na Justiça, porém, o peemedebista já garantiu seu lugar na história.
Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2017, edição nº 2548