A um passo da liberdade
Suzane von Richthofen está prestes a ganhar a rua. Mas um impasse a impede: a jovem que ajudou a matar os pais se nega a submeter-se a um teste psicológico
Suzane von Richthofen, de 34 anos, já se queixou de ser a única presa do trio que, em 2002, planejou e executou a morte de seus pais, Manfred e Marísia von Richthofen. Seu cúmplice e namorado à época do crime, Daniel Cravinhos, passou para o regime aberto há três meses. Cristian Cravinhos, o irmão mais velho de Daniel, já estava na rua havia sete meses, até ser obrigado a voltar para a cadeia na semana passada. Já Suzane, condenada a 39 anos de prisão — pena idêntica à de Daniel e apenas um ano maior que a de Cristian —, continua detida, com permissão para dormir fora da cadeia em apenas cinco saídas curtas por ano. O fato de até hoje ela não estar em liberdade, como seus comparsas, deve-se, neste momento, sobretudo a uma decisão pessoal. Suzane, que aos 18 anos confessou ter ajudado a matar os pais a pauladas com o objetivo de receber uma herança de 10 milhões de reais, tem se recusado a submeter-se a um teste psicológico determinado pela Justiça.
Todas as vezes que um preso tenta progredir para um regime mais brando, é submetido a exames criminológicos. Suzane pediu progressão ao regime aberto em maio do ano passado. Logo em seguida, a juíza Wania Regina Gonçalves da Cunha, da 2ª Vara de Execuções Penais de Taubaté, determinou que ela passasse pelos testes. Eles foram feitos em novembro de 2017 e o laudo ficou pronto no início deste ano. Os resultados foram favoráveis à jovem, mas nem tudo correu bem. A juíza criticou o fato de os testes terem sido aplicados por especialistas do quadro da penitenciária de Tremembé, que têm contato estreito com Suzane. Por causa disso, em março passado, a magistrada indicou uma banca de especialistas, formada por um médico psiquiatra e dois psicólogos independentes, para refazer os exames de Suzane. Os especialistas, a pedido da juíza, deveriam responder, entre outras questões, se a detenta “tem algum tipo de transtorno mental, se tem consciência moral, qual explicação dá para o crime em que se envolveu, se mostra arrependimento pelo que fez, se tem sinais ou traços de agressividade e, principalmente, se pode reincidir”. Além disso, a pedido do Ministério Público, a juíza decidiu juntar à bateria de exames convencionais um teste adicional — o de Rorschach. Suzane aceitou refazer o criminológico, respondendo àquele rol de perguntas formulado pela juíza, mas não aceitou o Rorschach. Seu advogado, o defensor público Saulo Dutra de Oliveira, formalizou o protesto de sua cliente em um agravo de execução impetrado na 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. “Em primeiro lugar, a agravante não é obrigada a submeter-se a qualquer exame”, escreveu. Ele argumentou que Suzane não “é objeto de estudo” para passar por testes que não são comumente aplicados à população carcerária. “A Defensoria Pública tem diversas ressalvas ao famigerado teste de Rorschach”, completou.
Esse teste, desenvolvido pelo psiquiatra e psicanalista suíço Hermann Rorschach no começo do século passado, é composto de dez pranchetas com borrões de tinta de diferentes formatos e cores. Ao analisado cabe examinar uma a uma as manchas e dizer o que enxerga nelas. A ideia é que as respostas projetem aspectos da personalidade do paciente, incluindo os que ele eventualmente não quer que venham à luz. O teste não é unanimidade, coisa rara de acontecer em campos complexos como a psicologia, mas é amplamente adotado. No Brasil, é validado pelo Conselho Federal de Psicologia.
As varas de execuções penais das cercanias de Tremembé costumam aplicar na maioria da população carcerária exames criminológicos simples e só exigem o teste de Rorschach para autores de crimes específicos: sexuais, extraordinariamente violentos ou cometidos em série. “A decisão de submetê-la (Suzane) a exames rigorosos ocorre porque ela cometeu crime grave, um duplo homicídio contra a própria família. É uma medida para proteger a sociedade”, escreveu o promotor Paulo de Palma em seu parecer. No início do mês, em resposta ao agravo de execução impetrado pelo defensor de Suzane, o desembargador Damião Cogan decidiu que a jovem não é obrigada a aceitar passar por testes que não deseja. Mas ressalvou: “A eventual recusa da agravante (no caso, Suzane) em submeter-se ao exame será considerada demérito para a progressão”. Ou seja: ela pode não fazer o teste, mas precisa aguentar as consequências negativas da recusa.
Suzane tem motivos para tentar escapar do Rorschach. Em 2014, a única vez que se submeteu ao teste, o laudo a descreveu como “manipuladora”, “dissimulada”, “narcisista” e “possuidora de agressividade camuflada”. No fichário de exames da jovem, constam relatos que detalham como ela costuma se comportar diante dos especialistas. Numa das vezes em que foi examinada, entrou na sala e imediatamente perguntou a um dos psicólogos se era psicopata. O especialista pediu que ela própria respondesse à pergunta, ao que Suzane retrucou, rindo: “A mídia diz que sim”. Para psicólogos forenses, comportar-se com bom humor durante uma avaliação criminológica é uma estratégia para criar um ambiente favorável e seduzir os profissionais com o intuito de obter um resultado positivo. Suzane, afirma um especialista que já esteve diante dela, às vezes muda de tática no decorrer da sessão. Começa se apresentando de cabeça baixa, com os ombros curvados e fazendo voz de criança. Se nota que não convence, recompõe a postura e passa a enfrentar o interlocutor, ora encarando-o com firmeza, ora respondendo a seus questionamentos com outra pergunta.
Os laudos anexados ao processo de execução penal de Suzane dizem ainda que ela tem “fantasia de onipotência” — ou seja, crê que tem poder absoluto sobre as pessoas que estão à sua volta. Ao comentarem o “narcisismo” da detenta, os examinadores observam que “ela acredita ser a única referência do mundo em que vive”. Para o Ministério Público, no entanto, o que mais complica a situação de Suzane quando se analisam os laudos de seus testes projetivos é a visão que ela tem do crime que cometeu. Especialistas asseguram que há na jovem “ausência evidente de arrependimento”. Ao ser questionada sobre o assassinato dos pais, não esboça nenhuma emoção e limita-se a sustentar a versão de que era uma menina ingênua, manipulada pelo ex-namorado.
Desde 2014, Suzane namora o marceneiro Rogério Olberg, de 38 anos, morador no município de Angatuba, a 357 quilômetros de Tremembé. Olberg tem uma irmã, Luciana, que cumpre pena no local e foi quem aproximou o casal. Quando começou a namorar, Suzane passou a ter não apenas um romance, mas também mais chance de obter autorização para saídas eventuais da cadeia. Antes de conhecer Olberg, ela chegou a abrir mão do benefício das saídas por não ter um endereço para fornecer à Justiça, requisito obrigatório para a permissão. Parte da família de Olberg aprova o namoro do rapaz com a jovem, outra parte o condena por achar que ela “usa” o namorado e vai abandoná-lo assim que ganhar a liberdade.
O destino dos irmãos Cravinhos
Daniel Bento de Paula e Silva, ex-Daniel Cravinhos, hoje com 37 anos, diz para quem quiser ouvir que permanece em lua de mel. Em 2014, ainda na prisão, ele se casou com a biomédica Alyne Bento, que conheceu no pátio da Penitenciária de Tremembé — ela visitava o irmão preso e é filha de uma agente penitenciária. Daniel aproveitou o casamento para adotar o sobrenome da mulher e se livrar do seu, que ficou indelevelmente associado ao crime que cometeu. Solto há três meses, o ex-namorado de Suzane Richthofen voltou a construir aeromodelos e se prepara para participar de competições no esporte em que já foi campeão nacional. Cristian, seu irmão mais velho e cúmplice no assassinato, havia deixado a cadeia antes dele, em junho de 2017. Planejava arrumar emprego e dar palestras para alunos de direito. A ideia era contar sobre sua experiência como réu no tribunal do júri, falar sobre o funcionamento do sistema carcerário e sobre o desafio de voltar à rua depois de quinze anos preso. Na quarta-feira 18, porém, acusado de agredir a ex-mulher, descumprir as regras do regime aberto e tentar subornar os policiais para que não lavrassem o flagrante, Cristian voltou para a cadeia.
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2018, edição nº 2579