Há 28 anos um grupo de pessoas se reúne semanalmente na sede da organização não governamental Anjos da Noite, em um sobrado no bairro de Artur Alvim, na Zona Leste de São Paulo. Os voluntários dedicam-se a aplacar as carências dos moradores de rua. Além de entregar cobertores e roupas, o grupo tem como principal incumbência a distribuição de refeições. Aos sábados, os colaboradores se organizam para preparar 200 quilos de comida. A distribuição de 800 marmitas tem início ao cair da noite. Anteriormente, os voluntários rodavam quatro horas pelas ruas da região central até entregar a última quentinha. Hoje, o trabalho é feito em menos de uma hora. Basta estacionar o carro e um grupo de pessoas carentes faz fila para ganhar o alimento.
A experiência dos Anjos da Noite confirma a percepção que tem qualquer cidadão dos maiores centros urbanos brasileiros: o número de pessoas que vivem nas ruas elevou-se, e muito, nos últimos anos. As estatísticas são esporádicas e por isso não é fácil saber com exatidão a proporção desse crescimento. O último recenseamento, realizado em São Paulo, em 2015, mostrou um total de 16 000 desabrigados, praticamente o dobro do registrado em 2000. De lá para cá, certamente esse número aumentou.
No Rio de Janeiro, cidade na qual a crise foi agravada pela dramática situação financeira do estado, a prefeitura estima que o número de moradores de rua tenha aumentado 150% nos últimos três anos, totalizando 14 200 pessoas. “Muita gente veio para aproveitar o boom econômico do Rio e perdeu tudo com a crise”, diz o secretário de Assistência Social, Pedro Fernandes. Nos últimos quatro anos, a área ocupada por favelas ganhou 140 000 metros quadrados na cidade, o equivalente a vinte Maracanãs. Obtido com exclusividade por VEJA, um levantamento do Instituto Pereira Passos traça um perfil dos mais carentes: 95% das pessoas em situação de vulnerabilidade econômica no Rio dizem não saber se aguentam até o fim do mês com comida na geladeira, 30% não possuem CPF, 25% têm filhos fora da escola e 20% vivem sem chuveiro nem vaso sanitário. O aumento no número de desamparados foi igualmente registrado em outras capitais. Em Belo Horizonte, havia menos de 2 000 moradores de rua em 2014; agora, eles passam de 6 000. O último Censo feito em Porto Alegre, de 2016, revelou a existência de 2 100 pessoas nessa situação, alta de 60% em cinco anos. No Brasil, um estudo do Ipea estimou em mais de 100 000 as pessoas sem teto em 2015.
“Existe algo que chamamos de rede de proteção familiar, que dá amparo a parentes desempregados, doentes, dependentes de drogas. Para as famílias de renda mais baixa, essa rede é frágil”, diz a economista Silvia Schor, professora da USP e coordenadora de pesquisas de população de rua na Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). “Quando essa sustentação se rompe, a pessoa vai para a rua, se o Estado não tem uma rede de proteção social que a segure.” O apoio oferecido pelo governo avançou bastante em relação ao passado, mas agora, com o agravamento da crise, não tem sido suficiente para conter o retrocesso social. Segundo estimativas do Banco Mundial, desde 2014 até o fim deste ano o país vai ganhar 4,7 milhões de pobres e 3 milhões de pessoas vivendo na extrema pobreza. Com esse acréscimo, mais de 28 milhões de brasileiros vivem hoje abaixo da linha da pobreza (renda média de 140 reais ao mês por pessoa), o equivalente a 14% da população nacional (veja o quadro na pág. ao lado). É um contraste atroz com o cenário de quatro anos atrás, quando o governo Dilma Rousseff anunciava que a miséria estava com os dias contados.
O Brasil, de fato, vinha se notabilizando pela redução rápida nesses índices. Foram 30 milhões de pessoas que saíram da pobreza entre 2004 e 2014, graças ao crescimento econômico, à criação de empregos e aos programas assistenciais — o que explica em grande parte a alta popularidade do governo de Lula. Mas, a partir de 2015, ainda sob a administração de Dilma, a tendência se inverteu. A reversão faz soar um alerta porque não é fácil romper o círculo. Os filhos de famílias miseráveis tendem a ter educação de má qualidade, alimentação deficiente, saúde precária. Crianças que moram nas ruas e nas favelas muito dificilmente terão capacidade para exercer as ocupações de remuneração mais elevada. Estudos revelam que, aos 4 anos, uma criança que vive em um lar miserável terá ouvido 13 milhões de palavras; na mesma idade, uma criança de uma família abastada ouve 45 milhões de vocábulos (leia a reportagem na pág. 82). A boa notícia é que esse deságio pode ser revertido, desde que mães recebam orientações durante a gravidez e ao longo dos primeiros meses de vida do bebê — e, certamente, desde que tenham emprego e comida no prato.
Uma pesquisa do IBGE divulgada na semana passada expõe outro aspecto negativo da crise social. O fosso entre os mais pobres e os mais ricos, que já era largo, voltou a se abrir. No ano passado, o 1% de maior rendimento do país recebeu em média 27 085 reais ao mês, o equivalente a mais de 36 vezes o rendimento da metade mais pobre da população (747 reais). A marcha a ré social levou à reedição da campanha Natal sem Fome, lançada originalmente em 1993 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, criador da ONG Ação da Cidadania e morto em 1997. A iniciativa de arrecadar mantimentos havia sido encerrada em 2007, graças aos progressos ocorridos na economia e nas políticas assistenciais. O filho de Betinho, Daniel de Souza, atual presidente da ONG, decidiu retomar o projeto: “Com o aumento do desemprego e, principalmente, com o risco de o governo deixar programas sociais em segundo plano, o avanço da pobreza voltou a ser uma preocupação”.
A falta de comida no prato voltou a fazer parte do dia a dia até mesmo de pessoas amparadas pelas redes de proteção aos mais pobres, como se constata na história do garoto Gabriel Amorim, de 8 anos, morador da periferia de Brasília, que foi ao colégio depois de ter comido apenas um mingau e desmaiou de fome a caminho da sala de aula. O menino mora em um apartamento de dois quartos do programa habitacional Minha Casa Minha Vida com os cinco irmãos e a mãe, Leidiana, atualmente desempregada. A geladeira quase vazia da casa não tem sido capaz de satisfazer a fome da criançada em fase de crescimento. A mãe deixou o sertão do Ceará em 2001 rumo à capital federal. Sonhava com dias melhores e encontrou sustento como catadora de lixo. Morou até o ano passado em um barraco, até ser sorteada para receber o apartamento — mas hoje mal consegue pagar as prestações e as contas da casa. A história de Leidiana é parecida com a do pernambucano Eduardo Bezerra da Silva, de 29 anos, que, ao lado da mulher e três filhos, aparece na foto de abertura desta reportagem. Ele chegou a Brasília em 2011 para ganhar a vida como catador de papel. Em 2012, conheceu Fabiana, a mãe de seus três filhos. Há dois meses a família vive em um barraco instalado em um terreno no Setor de Clubes Sul, a cinco minutos de carro do Palácio do Planalto e a poucos metros do Lago Paranoá, numa das áreas mais valorizadas da cidade. Bezerra da Silva perambula diariamente quilômetros e quilômetros pela região comercial para recolher papel e papelões. Desiludido, gostaria de voltar com os filhos para Pernambuco. Mas antes espera receber uma casa popular e vendê-la, para assim ter o dinheiro necessário para comprar um teto em seu estado natal.
É certo que o Orçamento federal também atravessa dias difíceis, mas Michel Temer e equipe parecem sempre encontrar espaço para liberar recursos para grupos organizados, enquanto o dinheiro para os pobres, desorganizados e desarticulados, não flui com a mesma agilidade. Pior: no projeto de Orçamento para 2018, sob análise do Congresso, o governo propôs reduzir os recursos destinados ao Programa Bolsa Família para 28,7 bilhões de reais, uma queda de 1,1 bilhão de reais em comparação com 2017. Caso aprovada, será a primeira queda nominal na história do programa, sem falar na corrosão inflacionária. Surpreendentemente, o ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, afirmou que haverá um reajuste acima da inflação no repasse ao programa em 2018. A assessoria do ministro, indagada por VEJA sobre como isso seria feito com um Orçamento menor, disse que o valor pode ser alterado e que o aumento está sendo estudado com a área econômica.
A retomada do crescimento voltará a criar empregos e, sem novas surpresas negativas, a pobreza cairá novamente. Para acabar de verdade com a miséria, no entanto, serão necessários anos de investimento em educação, saneamento básico, saúde. Isso só será possível se o governo cortar privilégios e subsídios que favorecem atualmente, sobretudo, os funcionários públicos, as pessoas mais ricas ou aquelas que já se encontram em uma situação mais confortável. Enquanto isso não ocorre, os desamparados têm de contar com a ajuda de voluntários como os Anjos da Noite. Afirma Kaká Ferreira, um dos fundadores da ONG: “Pode parecer contraditório, mas o meu desejo é que instituições como a nossa não precisem mais existir”. Ainda levará algum tempo para esse dia chegar.
“Só o poder público pode sanar a fome”
Daniel de Souza, presidente do conselho da Ação da Cidadania, diz que a ONG fundada por seu pai, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, decidiu relançar a campanha Natal sem Fome como um alerta para o governo e a sociedade sobre o aumento da miséria.
A sociedade pode substituir o Estado no combate à miséria? Não. Pode ajudar, mas quem tem capacidade para resolver o problema da fome é o poder público. As empresas e as ONGs não dispõem de condições para fazer com que a comida e os recursos cheguem a todos os necessitados.
Por que organizar o Natal sem Fome depois de dez anos? O objetivo da campanha sempre foi chamar a atenção das autoridades para a necessidade de implementar políticas públicas de combate à fome, além de sensibilizar a população para o tema. Queremos arrecadar 500 toneladas de alimentos neste ano. Suspendemos o Natal sem Fome em 2007 porque havia políticas de governo consolidadas com esse objetivo. Mas, com a crise econômica dos últimos três anos, a miséria voltou a crescer e isso pode se agravar.
Com reportagem de Luisa Bustamante, Marcela Mattos e Marcelo Sakate
Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2017, edição nº 2559