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A poetisa pop

Com apenas 25 anos e uma página feminista e provocadora no Instagram, Rupi Maur virou celebridade e já vendeu 4 milhões de exemplares de seus dois livros

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 17h39 - Publicado em 20 abr 2018, 06h00
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  • “Aos 11 anos, na escola, um garoto de quem eu gostava me xingou e quis que eu mostrasse os seios. Fiquei apavorada, congelei. Começou aí minha luta contra o abuso”

    A internet é repleta de fenômenos de popularidade, mas alguns são mais excepcionais do que outros. É o caso de Rupi Kaur, de 25 anos, nascida na Índia e criada no Canadá. Rupi é escritora de textos sérios, o que já é incomum na rede. Ainda por cima escreve poesia, um gênero nada popular. E, no entanto, Rupi é pop. Os dois livros que publicou até agora, Outros Jeitos de Usar a Boca (lançado no Brasil em 2014) e O que o Sol Faz com as Flores (2017), ambos pela Editora Planeta, estão no topo das listas dos mais vendidos de VEJA e do jornal The New York Times — são 4 milhões de exemplares em trinta países, em que pese ela postar todos os poemas na sua página no Instagram, onde tem 2,5 milhões de seguidores. Rupi escreve textos curtos, sem rimas, em letras minúsculas (uma amostra: caia / de amores / por sua solidão), acompanhados de ilustrações de próprio punho. Fala, muitas vezes em primeira pessoa, de sexo, feminismo, estupro. “Movimentos como o MeToo não são exagero, são um grito por ajuda e espaço”, ressalta ela nesta entrevista, concedida a VEJA por telefone.

    Quando parecia que poesia era um gênero fora de moda, seus livros de poemas se tornam best-sellers. Como a senhora explica isso? As pessoas tendem a achar que é difícil entender poesia. Mas hoje em dia os textos poéticos são muito voltados para a autorreflexão, e o público se identifica com isso. Os seres humanos experimentam emoções o tempo todo e buscam formas de expressá-­las, para conseguir superar os próprios demônios. A poesia atende a esse anseio.

    A senhora sempre pensou em fazer da poesia uma profissão? Nunca imaginei isso. Eu nem sabia que escrever poemas podia ser uma profissão. Achava que ia continuar a escrever poesias enquanto seguia carreira em alguma outra área. Pensei em ser advogada de direitos humanos, designer de moda, pintora, psiquiatra. Para mim, escrever poemas não era uma atividade em tempo integral. Pensava assim mesmo depois de publicar meu primeiro livro. Foi só quando assinei contratos para os seguintes que caí em mim: “Uau, este é meu trabalho!”. Até hoje me sinto um pouco desconfortável em dizer que sou poeta.

    É mais difícil escrever profissionalmente? Muito mais. O autor se exige demais quando percebe que não escreve só porque tem vontade. Antes eu podia errar, reescrever, tentar de novo. Agora sinto que não posso falhar, porque os leitores vão me julgar, os editores vão avaliar, pessoas que trabalham para mim dependem do emprego. A pressão é grande. Interfere, inclusive, na inspiração. Tenho me empenhado muito na divulgação dos meus livros. Preciso parar um pouco, descansar, estudar.

    “Os leitores me dizem que guardam o livro sob o travesseiro ou na mesa de cabeceira, para ler antes de dormir. Concluo que ler um poema on-line é diferente de poder tê-lo junto de você”

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    A senhora se tornou conhecida na internet, um canal de divulgação sem paralelo. Mesmo assim, seus livros impressos vendem milhões. Por que pessoas que podem ler sua obra on-line fazem fila nas livrarias? Parece que certos hábitos não mudaram. Muitos leitores me dizem que guardam o livro embaixo do travesseiro ou na mesa de cabeceira, para ler antes de dormir. Também gostam de dar de presente. Minha conclusão é que ler um poema on-line é diferente de tê-lo junto de você, disponível em um objeto que carrega emoção, que foi dado ou recomendado por alguém querido. Além disso, eu planejei o livro para contar uma história. A sequência amplifica as emoções. Não são 200 poemas jogados no ar aleatoriamente.
    Seus livros falam de experiências de miséria, refugiados, estupro, repressão. A senhora viveu essas situações? Meus poemas não são 100% autobiográficos. Por exemplo, em um capítulo do segundo livro falo especificamente sobre a crise dos refugiados, algo que não experimentei na pele, embora eu seja imigrante. Há textos que se baseiam nas histórias dos meus pais. O poema barco (afogar é melhor do que ficar / quantas pessoas a água já engoliu / até virar um grande cemitério) foi inspirado em um garoto sírio de 3 anos cuja história me tocou muito. Mas os textos sobre coração partido, sobre sexo, sobre paixão, esses são, sim, baseados no que vivi.

    Os que tratam de abuso e estupro também são autobiográficos? Claro. São episódios difíceis de contar, e justamente por isso os transformei em poesia. Só decidi compartilhar minhas experiências porque descobri que muitas amigas tinham passado por situações parecidas. Desde então, vários textos foram escritos também com base nas histórias delas.

    O estupro é um tema recorrente em sua poesia. Durante muito tempo eu achei que o que tinha acontecido comigo nunca havia sido experimentado por mais ninguém. Até que, um dia, uma garota contou que a mãe dela tinha sido estuprada por um primo. De repente, todas as meninas da escola começaram a falar. Percebi que não conversar sobre o problema não o torna menor. Meu coração dói só de pensar que há pessoas neste mundo que se sentem no direito de impor violência e dor ao corpo dos outros. Aquilo me deu tamanha raiva que tomei a decisão de ajudar as vítimas das maneiras ao meu alcance. Quero que percebam que nada lhes foi tirado. Ao contrário, ficaram mais poderosas ainda, capazes de qualquer coisa.

    Qual foi a primeira vez que se sentiu abusada? Foi na sexta série, aos 11 anos. Cheguei à escola e um garoto de quem eu gostava me xingou — usou uma palavra que eu nunca tinha ouvido — e quis que eu mostrasse os seios. Fiquei apavorada, congelei. Nem tinha seios! Começou aí minha luta pessoal contra o abuso. Tive sorte de poder contar com a minha arte. Por meio dela, canalizei aquela energia ruim para uma atividade produtiva.

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    A senhora vem da Índia, cuja cultura é considerada particularmente repressiva para as mulheres. Foi difícil escrever sobre sexo? Não, pelo contrário. Faço questão de escrever sobre o tema justamente para mudar esse estado de coisas. A cultura indiana de fato reprime as mulheres, especialmente por causa da religião. Na Índia, a sexualidade é um tabu, o que cria um problema terrível — as taxas de estupro são altíssimas. Lá, a mulher não pode fazer sexo fora do casamento e, quando faz sexo no casamento, não é para seu prazer, e sim para agradar ao marido. Por isso trato a sexualidade de maneira tão positiva. Tenho poemas inteiros sobre belas experiências sexuais. Recebo muito apoio e elogios de indianas. Mas também há pessoas que dizem: “Meu Deus, como você pode falar sobre isso? É vergonhoso”.

    “Aos 11 anos, na escola, um garoto de quem eu gostava me xingou e quis que eu mostrasse os seios. Fiquei apavorada, congelei. Começou aí minha luta contra o abuso”

    As mensagens de crítica são muito frequentes nas suas redes sociais? Sim, e a maioria tem a ver com sexo. Há algumas semanas publiquei um poema de uma frase só: i want to honeymoon myself (algo como “quero uma lua de mel comigo mesma”; no original, ela usa a forma verbal do substantivo lua de mel, dando à frase uma graça que escapa à tradução) e o ilustrei com o desenho de uma mulher masturbando-se. Minha intenção era destacar a importância de apreciar o próprio corpo. Muitas pessoas comentaram que aquilo era nojento. Interessante: homens falam sobre masturbação como uma coisa muito natural. Mas, quando uma mulher toca no assunto, vira algo monstruoso.

    Em 2013, quando postou no Instagram uma foto sua com manchas de sangue na roupa e no lençol e causou comoção, a senhora já pensava em fazer algum tipo de protesto? Não era minha intenção de modo algum. Eu estava no último ano da faculdade de letras e tinha de apresentar um projeto fotográfico. Escolhi provar que uma mesma imagem pode ser vista de maneiras diferentes dependendo da plataforma em que é exibida. Tirei aquela foto, mostrei-a aos meus colegas, aos professores, e ninguém fez objeção. Honestamente, não achava que seria um escândalo. Mas aí o Instagram resolveu remover a foto, e eu comprei a briga. Afinal, por que a cena era tão polêmica se quase todas as mulheres já acordaram naquela situação? Não postaria a mesma foto de novo, porque já é passado. Mas continuo a me desafiar a tratar de temas difíceis. E no fim das contas tirei nota 10 pelo trabalho. O Instagram acabou provando que eu estava certa.

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    Acha certo chamá-la de Instapoet? Depende. Existe mesmo um punhado de poetas que, como eu, se projetou a partir do Instagram. Visto por esse ângulo, o termo faz sentido. Mas não concordo quando dão uma conotação negativa, falam que fazer sucesso assim é fácil porque tudo o que se relaciona a abuso e sofrimento ecoa na internet, e tiram o mérito do meu trabalho. Considero essa visão ofensiva para mim e para os milhões de leitores que se identificam com as experiências relatadas.

    Qual é o perfil dos seus leitores? Comecei a ser ouvida entre as mulheres jovens, mas isso está mudando. Fiquei chocada ao descobrir que, na Índia, meu público é majoritariamente masculino e tem entre 50 e 60 anos. Muitos me escrevem dizendo que passaram a encarar suas esposas, mãe e filhas de modo diferente e me agradecem por isso. É um sinal de que estão participando da discussão, o que me deixa muito feliz.

    Muita gente compara seus poemas com letras de rap, pela forma como tratam da realidade. A senhora acha que há semelhança mesmo? Faz sentido, sim. Eu, inclusive, nas minhas palestras e leituras com o público, faço uma espécie de performance com várias poesias, às vezes usando música. Gostaria de fazer mais coisas desse tipo.

    O que a senhora lê? Carrego comigo o tempo todo O Profeta, de Khalil Gibran. É meu livro favorito. A ficção científica Ender’s Game: o Jogo do Exterminador, de Orson Scott Card, e os contos de É Assim que Você A Perde, de Junot Díaz, também são especiais. Leio muita poesia, mas não tenho um autor preferido. No momento, estou muito concentrada nos escritos da indiana Amrita Pritam. E, é claro, a série Harry Potter, da qual sou fã desde os 8 anos.

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    Gosta de ser conhecida, elogiada por gente famosa? Claro que gostei de receber elogios de Sam Smith, Ariana Grande, Jennifer Hudson. Espero que a Emma Watson tenha lido meus livros. Mal posso esperar para saber se a Hermione também gosta de mim. Mas, para dizer a verdade, essa história de ser reconhecida na rua faz com que eu me sinta nua, visível demais. Não parece, mas sou bastante tímida.

    A senhora recebe muitas mensagens de leitores brasileiros? Sim. As poesias de amor são as mais comentadas. Isso me dá a impressão de que o Brasil é uma sociedade apaixonada e expressiva.

    Publicado em VEJA de 25 de abril de 2018, edição nº 2579

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