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A páscoa de Lula

Em meio a um salseiro de botequim, o STF concede uma liminar adiando a possível prisão de Lula para o início do mês de abril

Por Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h31 - Publicado em 23 mar 2018, 06h00

Em democracias funcionais, as grandes decisões nacionais são tomadas pelo governo, pelo Congresso ou pela Justiça. No Brasil de hoje, com a política judicializada ao extremo, toda matéria relevante é decidida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). E a consequência inevitável é que ali se concentram as tensões nacionais, num ambiente de pressão crescente, como se viu em dois episódios na semana passada. O mais recente foi a discussão sobre o pedido do ex-presidente Lula de não ser preso assim que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, rejeitar os últimos recursos contra a sua condenação — o que deve acontecer nesta segunda-feira 26. O plenário decidiu que gostaria de decidir, mas não decidiu nada. Na prática, por 6 a 5, apenas concedeu uma liminar adiando a decisão para o início do mês de abril. Até lá, quando o STF vai então tomar uma decisão definitiva, Lula não poderá ser preso. Poderá passar a Páscoa em casa. Entre os cinco contrários, o ministro Luís Roberto Barroso disse o seguinte: “Ex-­presidente da República, republicanamente, deve ser tratado como qualquer brasileiro. Existe jurisprudência em curso, e ele não deve ser beneficiado por liminar”. Foi voto vencido.

A vitória parcial de Lula acontece no bojo de uma discussão que tem galvanizado as atenções: o STF deve ou não manter a autorização para a prisão imediata de condenados em segunda instância? O tema foi resolvido em 2016 a favor da prisão, e, como disse Barroso, já há uma “jurisprudência em curso”. Mas a insistência de todos os condenados em segunda instância — entre os quais Lula é o mais célebre — recolocou a questão em cena.

“Vou recomendar ao ministro que feche seu escritório.” – Gilmar Mendes, ao insinuar que o colega fez algo errado — e, de quebra, dando razão ao que Barroso dissera
“Vou recomendar ao ministro que feche seu escritório.” – Gilmar Mendes, ao insinuar que o colega fez algo errado — e, de quebra, dando razão ao que Barroso dissera (Wilton Junior/Estadão Conteúdo)

O outro episódio, que deu a medida do ambiente tóxico da Corte, ocorreu no dia anterior, na quarta-feira, quando o ministro Barroso perdeu o controle e esbravejou contra o ministro Gilmar Mendes em termos próprios aos botequins: “Me deixe fora desse seu mau sentimento, você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”. Barroso estava irritadíssimo com o hábito que Gilmar Mendes tem de criticar as decisões dos colegas insinuando sempre algum interesse oculto. Em resposta ao desabafo de Barroso, Gilmar Mendes fez o quê? Insinuou que as decisões de Barroso têm algum interesse oculto. “Vou recomendar ao ministro que feche seu escritório”, disse, sugestionando que Barroso mantém vínculos com o escritório de advocacia em que trabalhava antes de ser ministro — o que, se fosse verdade, seria ilegal. Depois do entrevero, Barroso fez uma carta à presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, em que afirma que não tem mais nenhum laço com seu ex-escritório.

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(VEJA/VEJA)

O destempero de Barroso é, obviamente, inadequado para um magistrado. No entanto, é forçoso admitir que Gilmar Mendes tem se notabilizado por acusar os colegas de Corte sempre que eles tomam uma decisão da qual discorda. Na mesma sessão de quarta-feira, ele já havia criticado as decisões da ministra Cármen Lúcia sobre a pauta da Corte, uma prerrogativa da presidente do tribunal. Pouco depois, criticou o ministro Luiz Fux, que suspendeu o julgamento sobre o auxílio-moradia pago a magistrados de todo o país. Quando Mendes estava criticando a decisão de Barroso de conceder liberdade a um médico e um funcionário de uma clínica acusados de fazer aborto, decisão que chamou de “manobra”, o colega perdeu a paciência. Disse Barroso: “Isso não tem nada a ver com o que está sendo julgado. É um absurdo vossa excelência aqui fazer um comício cheio de ofensas, grosserias”.

Gilmar Mendes, com suas invectivas contra os colegas e seu temperamento belicoso, está sempre denunciando, às vezes com clareza, outras vezes de modo oblíquo, que o casuísmo e as inclinações políticas estão pautando as decisões de alguns ministros, em detrimento da Constituição. Aqui também é forçoso reconhecer que Gilmar Mendes não está falando no vazio. A própria questão da prisão em segunda instância continua gelatinosa porque cada magistrado decide segundo suas convicções pessoais, em desobediência aberta ao que foi definido pela Corte. A exceção é a ministra Rosa Weber, que é pessoalmente contra a prisão em segunda instância, mas tem votado conforme a jurisprudência de 2016.

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O voto sobre a liminar de Lula é um eco claro dessa divisão. Os cinco ministros que votaram contra a concessão do salvo-conduto são favoráveis à prisão em segunda instância. Os que não gostam da ideia, como Gilmar Mendes, votaram a favor de Lula. Isso sugere que, se a discussão sobre prender ou não depois da segunda instância voltar mesmo a ser debatida, são grandes as possibilidades de que o entendimento de 2016 seja alterado.

A contradição essencial de Gilmar Mendes é que o ministro tem sido um protagonista incansável do casuísmo que ele acusa seus colegas de promover. Consta nos anais das grandes manobras judiciais sua decisão de interromper a sessão em que o plenário debatia a proibição de contribuições de empresas privadas às campanhas eleitorais. Como seu ponto de vista não estava prevalecendo, Gilmar Mendes pediu vista. Passou dezoito meses sentado em cima do assunto, até que a Câmara dos Deputados aprovasse um projeto sobre o tema. Pior: quando interrompeu o julgamento, o placar estava em 6 a 1. Ou seja: na prática, a Corte, de onze membros, já definira o resultado. Além disso, Gilmar Mendes é um dos mais empenhados em pressionar o STF a retomar a discussão da prisão em segunda instância porque mudou de opinião. Em 2016, foi a favor. Agora, diz que é contra.

Tudo isso mostra uma corte conflagrada, em que as decisões de plenário são ignoradas por uns e aceitas por outros, cada um decidindo do seu próprio modo, minando a estabilidade jurídica. A situação é especialmente delicada quando o STF tem sido o epicentro das decisões nacionais, o que deixa o país em suspenso toda vez que a Corte marca um debate essencial. A quinta-feira foi um dia desses: todas as atenções estavam voltadas para a decisão sobre a prisão de Lula. Porque, do jeito que a coisa ia, tudo podia acontecer. Inclusive nada — que foi o que aconteceu. Apenas um adiamento.

Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575

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