Até o ponto final desta frase, a engrenagem financeira que tirou Neymar do Barcelona e o levou ao Paris Saint-Germain (PSG) terá girado 380 reais — sim, são 38 reais a cada segundo. Afinal, o valor total da transação (incluídos a multa rescisória, as comissões, os impostos e o montante anual de salário) chega a 1,2 bilhão de reais — cifra que, dividida pelos doze meses de um ano, resulta em 100 milhões de reais por mês, 23 milhões por semana, 137 000 reais por hora. É uma quantidade colossal de dinheiro. É a maior transação envolvendo um jogador de toda a história. O francês Paul Pogba, agora em segundo lugar no ranking, trocou a Juventus pelo Manchester United, em 2016, pelo equivalente hoje a 388 milhões de reais — menos da metade do valor do craque brasileiro. Sozinho, Neymar tem quinze vezes o tamanho financeiro do plantel do Amiens, o adversário do PSG no sábado 5. Se fosse um político, seria 2 400 vezes um Rocha Loures, o deputado amigo de Temer flagrado com uma mala de 500 000 reais. É uma montanha de euros inimaginável — mas nem tanto assim, dada a força do fundo Qatar Sports Investments, dono do PSG, que está debaixo do guarda-chuva de outro grupo, o Qatar Investment Authority, com ativos de 1 trilhão de reais.
“O Neymar para nós é uma marca”, disse o xeique do Catar, Nasser Al-Khelaifi, presidente do PSG. “Não acho que seja caro, e muito em breve ganharemos ainda muito mais com ele.” Segundo o treinador português José Mourinho, do Manchester United, “o problema é o que virá depois, com atletas sendo negociados a 60, 80, 100 milhões de euros”.
O que virá depois, para Neymar, são outros quinhentos. Pouco importa, agora, se ele será capaz de se transformar no melhor do mundo, sem a sombra sempre incômoda do genial Lionel Messi, ou se conseguirá levar o PSG ao título da Liga dos Campeões. Nada disso são favas contadas, e há muita estrada pela frente, em cinco anos de contrato, até 2022. Mas a vontade de estar numa ribalta individual — além do caminhão de dinheiro que atravessou seu percurso, com salário anual de 226 milhões de reais, o dobro do que recebia na Espanha — é que fez Neymar cruzar a fronteira. Nas palavras de Pelé, em entrevista exclusiva a VEJA: “Vai ser um grande desafio para ele se tornar definitivamente o maior de todos, jogando num time que não é tão equilibrado como o Barcelona.
Mas já fico feliz porque é cria do Santos”. Pelé tenta enxergar em Neymar uma figura como ele foi, o menino de família simples, a cria que ganhou o planeta (embora o Rei só tenha deixado o Santos quando um convite do New York Cosmos o fez retornar aos gramados, em 1975). Há um quê de romantismo nesse raciocínio, de um período monocromático em que, mesmo já campeão do mundo pelo Brasil, em 1958, o camisa 10 andava num Fusca um tanto velhinho. Neymar é de outra época, abastada e multicolorida, e nada mais definidor desse novo tempo que o uso frenético das redes sociais — mais até que o desembolso, também frenético, de dinheiro. Na semana passada, todas as movimentações de Neymar, de seus assessores, de seus pais, de seus advogados, de seus amigos, das empresas que o contratam como garoto-propaganda foram acompanhadas pelo Facebook, pelo Instagram e pelo Twitter, no vaivém da geolocalização, pontuadas por emojis. Neymar tem mais de 170 milhões de seguidores.
Vindo da China, onde estava para compromissos publicitários, com conexão no Catar, ele fez uma selfie ao lado de um toiss (“membro do séquito que o segue”, no esperanto da turma), com um filtro no qual aparecia com orelhinhas de cachorro. Pronto: feliz da vida, vai assinar o contrato lá mesmo pelas Arábias. Não demorou, e voltou ao ar com uma bandeira da Espanha. Pronto: vai ficar no Barcelona, só que não. VEJA acompanhou o empresário Wagner Ribeiro, um dos consultores do negócio, em um voo que deixou São Paulo, fez escala em Paris e seguiu para Barcelona — ele tinha sido convocado às pressas por Neymar da Silva Santos, o pai da joia. Ribeiro publicou no Twitter uma foto da capital francesa em que celebrava a beleza da cidade, o vinho, a gastronomia e o esporte. Estava em Paris, mas apenas de passagem. Queria despistar a plateia e, aparentemente, dar a senha de uma informação que seria confirmada por Messi (no Instagram, é claro), em espanhol: “Foi um enorme prazer ter compartilhado todos esses anos com você, amigo. Nos vemos. Tkm”. Depois do “te quiero mucho” (tkm), o próprio Neymar comentou, com uma expressão hispânica típica: “Gracias hermano… te echaré de menos tío!”, querendo dizer que sentirá falta do argentino. E ali, naquela troca de carinhos, deu-se o caso por encerrado. Neymar apareceu no treino do Barcelona a bordo de seu Audi RS7 azul-metálico. Disse adeus aos companheiros no vestiário (em grupo, tiraram as coisas do armário do brasileiro para colocá-las numa mochila), e a partir dali a saga foi transferida para os cartórios e bancos.
Num certo momento, tudo soava travado como o ar parado da canícula de 30 graus que parecia fazer derreter até a Sagrada Família: a Liga Profissional da Espanha informou que não aceitaria o depósito de 222 milhões de euros para tirar Neymar do Barcelona. Como não cabe à liga aceitar ou não, era tudo jogo de cena. O Barcelona reclamou da injeção desproporcional de recursos do Catar. Esqueceu que foi um dos primeiros clubes a ser patrocinados pelo país do Oriente Médio, sede da Copa do Mundo de 2022. Em 2011, a Qatar Foundation, uma ONG financiada pelo dono do PSG, foi pioneira em estampar um patrocínio remunerado na camisa azul e grená do time catalão — até ali, apenas o Unicef aparecia no uniforme do Barça, mas sem pôr nem um centavo.
Na quinta-feira 3, enfim os cobres entraram nos cofres do Barcelona, depois de uma reunião no hotel Princesa Sofia, e foi o ponto-final no casamento com Neymar, que começou em 2013, com contumazes confusões com o Fisco, ainda investigadas. Com a linha Maginot rompida, deu-se a polvorosa na Catalunha e em Paris. Antes mesmo de o martelo ter sido batido, as camisas número 11, o de Neymar, tinham sumido das araras e prateleiras da loja oficial, dentro do Estádio Camp Nou. “Mandaram-nos tirar todas hoje cedo”, disse um vendedor. Painéis publicitários eram retocados às pressas.
Em postes ao redor do estádio um cartaz avisava, como se o legítimo direito de um atleta de procurar outra casa fosse um crime de lesa-pátria: “Procura-se traidor. Mercenários fora de Barcelona. Somente jogadores que amem a camisa”. O diário esportivo Sport exclamou: “Até nunca mais!”. Paris, do outro lado dos Pireneus, chorava a morte de Jeanne Moreau, comemorava a escolha da cidade como sede da Olimpíada de 2024 e aguardava pelo oui de Neymar, tudo na mesma manhã. “Ele está chegando”, estampou o L’Equipe. Até mesmo o presidente francês Emmanuel Macron festejou. Num encontro com o xeique Nasser Al-Khelaifi, presidente do PSG, Macron disse: “Parabéns, soube que trouxe boas notícias”. Antes, o ministro francês das Contas Públicas, Gérald Darmanin, já reagira ao desembarque do jogador. “Se efetivamente Neymar vier para o clube francês, então o ministro das Contas Públicas vai comemorar os impostos que ele pagará na França.” Na quinta-feira, o PSG divulgou um simpático vídeo em que a Torre Eiffel aparece iluminada de verde e amarelo, em homenagem ao Brasil.
Ver autoridades entrando em campo quando se trata de transferência de estrelas do esporte não é exatamente novidade. Em 1975, Henry Kissinger, então conselheiro de Segurança do governo americano de Gerald Ford, chegou a ligar para um ministro de Ernesto Geisel sugerindo que ele ajudasse a convencer Pelé de que ir para os Estados Unidos seria boa ideia. Kissinger deu a entender que a ida de Pelé para Nova York, levado pelo Cosmos, seria um extraordinário lance diplomático. A lembrança do Cosmos, como contraponto ao balé de Barcelona e Paris, é didática.
Comprova o fenomenal fosso que separa a sociedade de hoje — mais interessante, mais sagaz, mais variada, mais rica (mas também mais ladina e injusta) — daquela dos anos 70 do século passado. Pelé assinou um contrato de 2,8 milhões de dólares por um período de três anos, o equivalente a 12,8 milhões de dólares hoje. São 40 milhões de reais, ou quase duas semanas do valor de Neymar. Um estudo recente mostrou que toda a equipe estelar do Cosmos — Pelé, Carlos Alberto, Beckenbauer, Cruyff e cia. — valeria pouco mais que a metade da multa rescisória paga pelo xeique para levar Neymar.
Exposto a essas cifras e instado a comparar os dois momentos, Pelé respondeu com um pedido de perdão pelo atávico uso da terceira pessoa do singular. Disse: “É diferente, o Pelé foi para o Cosmos depois de encerrada a carreira. Foi para promover a bola redonda (e não a oval), que nos Estados Unidos ainda engatinhava. Tudo isso depois de ter sido campeão mundial cinco vezes, três pela seleção e duas pelo Santos. Na idade do Neymar, 25 anos, o Pelé teve vários convites para sair do Brasil, mas não aceitou”. Neymar tem um único título mundial, pelo Barcelona.
Há outra diferença, que Pelé não conta, mas a história revela. Depois de um jantar no Guarujá com representantes do Cosmos e seu staff, dias antes do acerto, Pelé fez questão de pagar a conta. Assinou um cheque (estávamos em 1975), sorriu e informou aos convivas: “O garçom e o restaurante nunca vão depositar este cheque com a minha assinatura. Vão guardar de lembrança”. Os cheques de Neymar, que apesar do alvoroço ainda não é um Pelé, são compensados. Ele inaugurou em Paris, na sexta-feira 4, apresentado pelo PSG, uma nova etapa — outro turbilhão de vida, para usar o título da mais conhecida canção interpretada por Jeanne Moreau em Uma Mulher para Dois. “Pela segunda vez na vida contrariei meu pai”, escreveu no Facebook, fazendo crer que havia pressão em casa para que ele permanecesse na Espanha (ninguém acreditou). A primeira negativa foi no tempo da venda para o Barcelona — Neymar pai preferia o Real Madrid.
Neymar será cobrado. É um excelente produto, um tremendo negócio, e por isso provoca tanta comoção. É um popstar tão onipresente que quase nos esquecemos do substantivo masculino que define sua principal atividade e que será usado nesta reportagem pela primeiríssima e única vez, apenas antes do ponto-final: futebol.
Com reportagem de Silvio Nascimento e Alexandre Senechal
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2017, edição nº 2542