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A humanidade de um mito

Na biografia 'O Tiradentes', o jornalista Lucas Figueiredo oferece um retrato detalhado do triste mártir do primeiro movimento republicano brasileiro

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 17h49 - Publicado em 3 ago 2018, 07h00
A humanidade de um mito
‘O Tiradentes’, de Lucas Figueiredo (Companhia das Letras; 520 páginas; 79,90 reais ou 39,90 em versão digital) (//Divulgação)

Nos seus 46 anos de vida, Joaquim José da Silva Xavier não terá visto jamais uma escova de dentes. As primeiras escovas a ser produzidas em escala comercial, afinal, só apareceriam na Inglaterra nos anos 1780. Em um Brasil colonial previsivelmente assolado por cáries, Silva Xavier encontrou no ofício de arrancar dentes e produzir próteses artesanais uma fonte regular de proventos. Não foi sua única profissão: ele também tentou a sorte como mascate, fazendeiro, minerador. Foi militar do corpo dos Dragões, carreira que só lhe trouxe frustração: embora tenha prestado bons serviços, desbaratando uma violenta quadrilha de bandoleiros na Serra da Mantiqueira, nunca passou de alferes, o mais baixo posto do oficialato. Mas é sobretudo pelo apelido de Tiradentes que Silva Xavier foi nomeado na primeira condenação aos conspiradores da Inconfidência Mineira, em 1792; é como Tiradentes que ele se consagrou na história — e agora é esse o título da mais substancial biografia já escrita sobre ele: O Tiradentes, do jornalista Lucas Figueiredo.

Amparada em ampla pesquisa documental — incluindo aí um cuidadoso cruzamento dos depoimentos por vezes contraditórios dos onze volumes dos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira — e redigida com bom pulso narrativo, a biografia entrega ao leitor um personagem ao mesmo tempo cativante e exasperante no zelo com que abraçou a causa da independência do Brasil (ou, pelo menos, de Minas Gerais). Tiradentes não foi o maior líder do movimento: no núcleo mais aguerrido da conspiração republicana, o poeta e advogado Tomás Antônio Gonzaga era aventado como provável presidente provisório de um novo país liberto da exploração mercantil de Portugal. Mas o alferes era reconhecido como o maior entusiasta da conjuração. Pregava a causa a quantos lhe aparecessem pela frente. Essa paixão um tanto ingênua levou-o a uma exposição excessiva. Em 1792, ao fim dos processos, Tiradentes seria o único conspirador a ter a pena de morte confirmada. Enforcado no Rio, teve o corpo esquartejado, para que os pedaços fossem expostos, como exemplo, nos vários lugares onde atuou. A cabeça ficou na praça da capital mineira, Vila Rica (hoje Ouro Preto).

O livro oferece uma noção muito vívida do que era a vida cotidiana em Minas Gerais na segunda metade do século XVIII, quando a produção de ouro que havia transformado a província no esteio econômico da matriz europeia já declinava drasticamente. Também delineia as intrincadas alianças e compromissos dos inconfidentes, todos mais ricos que Tiradentes, alguns deles genuinamente idealistas, outros movidos apenas pelo interesse de ver apagadas as dívidas que tinham com a coroa portuguesa. Sobretudo, Lucas Figueiredo compõe um retrato vigorosamente humano do biografado. Avulta, sobretudo, a silenciosa dignidade com que ele se portou durante os anos de prisão, chamando para si, nos interrogatórios, a responsabilidade maior pela pregação republicana, enquanto seus companheiros preferiam acusar uns aos outros. Esse foi o homem que o poder colonial quis apagar da História, mas acabou convertendo em mito.

Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2018, edição nº 2594

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